TV
Olhar ou não olhar
Por Correia da Fonseca
Há
poucas semanas, uma revista francesa especializada em
media publicou os resultados de uma sondagem à opinião
dos telespectadores. Perguntava-se, no fundamental, como
reagiriam eles à eventualidade de se verem totalmente privados
de televisão durante uma semana inteira. Mais de metade dos
inquiridos responde que se sentiria muito bem, desse modo
reforçando a resposta no mesmo sentido que há alguns anos havia
dado à mesma questão. O maior número dos que afirmam agora que
podem viver perfeitamente sem TV durante uma semana inteira
parece corroborar as notícias acerca de um crescente fastio dos
franceses pela televisão que lhes é fornecida e que, lá como
cá, se mediocrizou radicalmente desde que o negocismo privado
passou a dominá-la. Porém, a pergunta formulada ia claramente
no sentido de avaliar como está a evoluir a teledependência em
França e, no limite, de procurar saber qual é o segmento de
franceses que, por repugnância, por irreversível decepção ou
por mero desinteresse, se mostra decidido a viver sem TV.
Não é só em França, é claro, que existem como que «bolsas»
de cidadãos que querem optar por uma existência que decorra
como se a televisão não existisse: não a olham, não a
discutem minimamente, não se interessam por notícias a seu
respeito. É sabido que têm excelentes razões para isso.
Duvido, porém, que seja uma atitude sábia. Lembram-me os que,
noutros tempos, imagino a recusarem-se a reconhecer a existência
dos comboios ou, ainda mais longe no tempo, dos livros,
obstinando-se em viver como se eles não existissem. A questão
é que a TV existe, sim, e muito, sendo que o aparente recuo
circunstancial dos seus incondicionais consumidores não
pronuncia de modo nenhum a sua anulação. O mundo actual é,
inevitavelmente, um mundo onde o televisor exerce uma função
social de primeiríssima importância, e tentar ignorar este
facto é como que querer emigrar para uma existência
extraterrestre. A TV actua sobre o quotidiano em todas as áreas
e a diversos níveis. Por isso, quem queira entender o
quotidiano, para agir sobre ele ou não, tem de «vigiar» a TV.
Mudar os cenários
Acontece, como é geralmente sabido e
reconhecido até por muitos dos que a consomem sem asco, que a
televisão que temos não presta. Existem, aliás felizmente,
alguns que procuram ter perante ela uma atitude cautelosa e
inteligente, buscando, entre o muito lixo que lhes é despejado
em casa, os poucos momentos que possam aproveitar sem enjoo nem
dano. Não direi que procedem mal: afinal todos temos direito à
salvação individual. O terrível é que, como alguns sabem, a
médio ou longo prazo a salvação individual não é possível:
os venenos injectados nas atmosferas, incluindo a atmosfera
social, sempre acabarão por se nos infiltrarem nos pulmões, nas
veias, se não exactamente nos nossos decerto que nos dos nossos
filhos, amigos, companheiros. Pelo que é indispensável, parece,
não apenas estar atento ao perigo corno resistir-lhe. E não se
vê como se possa resistir-lhe sem o conhecer.
Significativamente, a consciência do perigo que tem vindo a
alargar-se, incluindo já os que na altura conveniente trocaram
Marx por Popper ou fizeram permuta semelhante. Esse alastrar da
lucidez tem preocupado até os fizeram do tráfico do telelixo a
carreira fulgurante e o estatuto de arrogância, e a sua
preocupação vem resultando em acrescido fogo disparado sobre os
poucos que teimam em denunciar que o rei não apenas vai nu mas
também vai emporcalhado. Entretanto, no interior dos estúdios,
a TV faz de conta que muda, que evolue. Em vão: de facto, a
televisão que temos comporta-se como se tivesse chegado, ela,
já que não o mundo, se precipitadamente anunciado «fim da
História». Agora mesmo, no limiar do que em tempos foi costume
entender como uma nova «saison» televisiva, as programações
se revelaram «cada vez mais na mesma» e as mudanças operadas
foram-no nas cenografias que enquadram os noticiários das duas
estações privadas e pouco ou nada mais. E mais que
sintomático: é quase simbólico.
De facto, à TV comercialona não parece restar muito mais que
acentuar a oferta rasca, nas áreas do sensacionalismo, da
violência e do sexo quase mecânico, não havendo sinais de que
essa fuga para um maior aprofundamento no pântano sirva para
suster a enfadada sociedade do público. Simultaneamente, crescem
indícios de que a publicidade televisiva é cada vez menos
eficaz sobre um mercado consumidor malhadiço e calejado. Este
outro aspecto, que por razões óbvias é cuidadosamente ocultado
pelos operadores publicitários, marca um outro e ameaçador
limite àquilo que entre nós é designável por TV Pimba.
Relevando estes dados, não quero dizer, tornando-me exageradão,
que há fartos motivos para ter esperança no regresso de uma TV
decentezinha, realmente interessante e útil. Digo, isso sim, que
tudo isto merece olhos de ver e cabeça de pensar. Mais um pouco:
que tudo isto merece resistência e luta, porque, sem que
possamos saber ao certo o que está em jogo a longo prazo,
apercebemo-nos com clareza bastante que se trata de uma área
fundamental. Que tem a ver com cada cidadão e não apenas com os
três ou quatro sujeitos um pouco bizarros que teimam em querer
comentar na imprensa a TV que devia ajudar-nos e de facto nos
destrói.
Pior a emenda que o soneto!Na passada 6ª. feira, em rubrica cinematográfica intitulada «Sessão Especial», transmitiu a RTP 1, pela primeira vez, o filme «Cinco Dias, Cinco Noites», adaptação ao cinema da novela do mesmo título da autoria de Manuel Tiago (Álvaro Cunhal). Tendo em consideração a forma como a RTP tem tratado o cinema nacional - relegando-o em geral para a quase clandestinidade do seu segundo canal, e isto porque a própria empresa raramente atribui especial relevância, em termos de visibilidade pública ou de propaganda, aos programas ali transmitidos - não deixa de ser positivo constatar-se uma aparente mudança de critério ao colocar o referido filme num horário decente no canal para o qual ela sempre decidiu captar e desviar maior audiência. Além do mais, «Cinco Dias, Cinco Noites» destaca-se, no panorama cinematográfico português, por ser dos pouquíssimos filmes que (por maioria de razões antes) e mesmo depois do 25 de Abril se interessaram pela realidade vivida sob a ditadura e pela temática da luta anti-fascista. É obra!
Entretanto, não deixa de ser estranho que o lado assinalável deste acontecimento, agora também televisivo, tenha ficado ensombrado pela decisão tomada tardiamente (e assim comunicada aos órgãos de comunicação social) de transmitir na véspera, tarde e a más horas, um excelente documentário da autoria de Diana Andringa - «A Descoberta da Vida, da Luz... e da Liberdade Também» - já realizado em 1996 e então transmitido, se a memória não falha, nas vésperas da estreia nas salas de cinema do referido filme. Tanto mais que esse documentário, pela entrevista que é feita ao realizador Fonseca e Costa a propósito da sua carreira, pelos excertos dos seus filmes mais significativos, pelos comentários do crítico Jorge Leitão Ramos e pela própria entrevista com Álvaro Cunhal (na qual este demonstra uma opinião de certo modo invulgar tendo em conta a habitual postura por parte dos criadores literários a propósito da questão da adaptação das suas obras a uma linguagem artística específica como é a do cinema), não deixaria de constituir de novo uma excelente introdução, agora à passagem do filme no pequeno ecrã.
Pois parece não ter sido esta a opinião da RTP já que a) comunicou à imprensa esta alteração da programação à última hora, apenas com 48 horas de antecedência (no caso do «Avante!», em fax datado de 3ª. feira 7 às 17 horas) e b) entendeu serem as duas e meia da madrugada, com término por volta das três e trinta (!), o período da emissão mais adequado à referida transmissão.
Mais comentários para quê? Francisco Costa