InterMEDIAções
Por Fernando Correia
Sabonetes e presidentes
«Reunião de responsáveis da estação. Rangel preocupa-se com a imagem "que se tenta dar" da SIC: «que só pensamos em dinheiro, que vendemos a alma ao diabo... É uma ideia que precisa de alguma correcção.» Como? «Por exemplo, estávamos um mês inteiro... Este mês é dedicado à luta contra o cancro; o outro mês é dedicado a ajudar os cegos; o outro aos que lutam contra a sida; e não esquecer as crianças... E porque não fazer um peditório a favor dessas instituições através do telefone? (A chamada) custava por hipótese 600$00.»
A propósito de contas, o director de informação e programas insiste em que a SIC pode ganhar dinheiro de outras maneiras (merchandising, audiotexto, etc.) que não tem aproveitado. Com ênfase: «Volto à minha velha e permanente tese: uma estação que tem 50% de share vende tudo, até o Presidente da República! Um bocado para aqui, um bocado para ali... Vende sabonetes... Vamos lançar sabonetes, sabonetes SIC: vendeu tudo! A SIC tem de ser o pivot para lançar outros projectos ...»
Estes dois eloquentes
parágrafos são um extracto do relato feito por Joaquim Fidalgo
no Público do documentário sobre a SIC transmitido
recentemente pelo canal Arte, já argumentadamente comentado por
Francisco Costa nestas páginas. Queria só deixar mais uma
pequena nota, cujo verdadeiro alcance só o futuro esclarecerá.
A propósito desta «velha e permanente tese» reivindicado por
Rangel e do exemplo presidencial por ele invocado, vale a pena
registar esta reflexão de Mário Mesquita, que também pode ser
entendida como uma previsão, ainda que formulada em tom
interrogativo: «E se, neste jogo do real-virtual, a SIC
visa actualmente a Câmara de Vila Verde, com o apoio da Frente
Revolucionária de Esquerda, por que não há-de promover no
futuro, a pretexto de experiências sociológicas, uma
candidatura à Presidência da República, protagonizada não por
um jovem de etnia cigana mas por um político bon
chic bon genre, um antigo primeiro-ministro
pleno de encanto pessoal e de experiência política?»
Sim, por que não? Afinal, nesta «aldeia» tomada «global» pelas novas tecnologias aplicadas à informação, a Itália é aqui tão perto...
Saúde democrática
Continuemos com os mesmos. A
suspensão de João Carreira Bom como colaborador do Expresso,
na sequência de uma crónica («0 patriota», 15.10.97)
critica em relação ao patrão do jornal e da SIC, a propósito
da programação desta, causou alguma celeuma e, até, algum
separar de águas entre analistas da imprensa.
A crónica era fortemente irónica e satírica, aliás dentro do
espírito próprio daquele espaço do semanário. Começa por
acusar Balsemão de ter «criado há cinco anos em
Carnaxide uma estação transformadora de telelixo» e
de fornecer aos telespectadores portugueses «os produtos
abjectos de que eles necessitam». Mas faz-lhe um elogio:
«num país onde quase tudo se comercializa com
manuais em línguas bárbaras, ele é um patriota: transmite
telelixo em português».
Continua neste tom: «O Rei D. Carlos queixava-se da
"piolheira"; o dr. Balsemão, entretendo-a, explora-a:
ganha dinheiro com ela e ainda temos que lhe agradecer.» E
o texto termina da mesma forma elogiosa:
«Dando aos portugueses os produtos
interessantíssimos que a maioria deles quer, e fornecendo-os
quase todos no idioma de toda a gente, o canal dos drs. Balsemão
e Rangel emerge como o mais patriótico. Quando nos "tiram
tudo", quando até nos "tiram" o que nunca
tivemos, é alguma coisa deixarem-nos a língua. Nem que seja só
para lamber sabão.»
Deve dizer-se que, em princípio, é compreensível que quem
mande num jornal não aprecie muito que a sua pessoa seja assim
zurzida nas suas próprias páginas; e que, portanto, não queira
ter colaboradores que o ponham em causa na praça pública. E
isto tanto vale para o Expresso como para o jornal da
Paiã de Baixo ou qualquer outro.
Mas o que choca é esta situação discricionária própria de
sociedades como a nossa, dominadas na economia e nas ideias pelos
mais ricos, cujo funcionamento permite que o patrão (ou os seus
capatazes) de um império mediático se mostre muito indignado
com textos como o citado e, ao mesmo tempo, permita e elogie um
programa como A Noite da Má Língua, em que figuras
respeitáveis e dignas foram vítimas indefesas de ataques
ignóbeis e de insultos soezes.
A defesa deste programa feita há tempos por Emídio Rangel (nas
páginas do Expresso) assume nestes dias um sabor muito
especial: «A Noite da Má Língua tem de ser entendido
no contexto da ironia e da sátira, muito saudável numa
sociedade tão bloqueada como a portuguesa, com elites com
espírito bastante medieval.»
Dir-se-á, e com alguma razão, que a capacidade de «encaixe»
de Francisco Balsemão diminuiu, ao longo dos anos,
proporcionalmente à expansão do seu grupo mediático.
Registe-se o testemunho de Vicente Jorge Silva: «Para
quem trabalhou com ele e com ele partilhou os princípios
básicos da deontologia jornalística, faz impressão ver como o
fundador do Expresso se
tornou prisioneiro de um negócio que está nos antípodas do
verdadeiro jornalismo. Por causa da SIC um colaborador do Expresso
acaba de ser suspenso por atentado de
lesa-majestade a Balsemão. Enquanto escrevi no Expresso
e critiquei Balsemão como
primeiro-ministro, o seu «fair-play» era outro. Mesmo que a
minha liberdade de opinião tenha tido o seu preço.»
Mas mais do que considerações sobre
Balsemão «antes da SIC» ou «depois da SIC», é importante
constatar a realidade nua e crua: o patrão do canal televisivo
português de maior audiência não pode ser criticado no
semanário português de maior tiragem. E, quem sabe, talvez que
daqui a alguns anos nem o canal televisivo nem o semanário
poderão criticar o então presidente de todos os portugueses,
entretanto eleito com a sua ajuda...
São estes os efeitos e as consequências da concentração e da
natureza da propriedade dos media, com meia dúzia de
grandes capitalistas a dominarem (juntamente com o governo de
serviço) toda a comunicação social de expansão nacional.
Efeitos e consequências que atingem não só a liberdade de
expressão mas também a própria saúde democrática.