A TALHE DE FOICE

Águas


As intempéries que assolaram o país nos últimos dias vieram demonstrar, sem margem para dúvidas, não só que Portugal mete água por todo o lado, o que já se desconfiava, mas sobretudo que eleições autárquicas e chuvadas constituem entre nós uma mistura explosiva.
Porque ninguém é inocente nestas andanças da vida, não é de estranhar que ande meio mundo a sacudir a água do capote, desvalorizando pecadilhos que inevitavelmente acumulou na gestão da coisa pública, ao mesmo tempo que reivindica méritos sem os quais, aceite-se, a catástrofe seria ainda maior. O que já se torna difícil de compreender é que candidatos pretensamente sérios, capazes, eficientes, e o mais que o léxico eleitoral não se inibe de propagandear, venham a público espetar o dedo acusador aos adversários, no mais descarado e oportunístico aproveitamento da adversidade alheia.
Como quem anda à chuva molha-se, estes aprendizes de feiticeiro de cor laranja travestidos do cinzentismo político com que pretendem branquear o seu próprio passado, acabam, involuntariamente, por revelar o que tanto pretendem esconder.
Ferreira do Amaral, por exemplo, já deve nesta altura ter arranjado um torcicolo à força de tanto olhar para a Câmara de Lisboa. Assim se compreende que o ex-ministro das Obras Públicas, que acabou de apresentar o projecto salvador da capital que os sucessivos governos laranja nunca implementaram, não consiga ver o que se passa no concelho de Oeiras, onde um confrade político mete água há vários mandatos. Ou ainda que fique mudo e quedo perante o drama de Ribeira Quente, povoação de uma região autónoma dominada durante décadas pelo poder laranja, onde três dezenas de pessoas perderam a vida e grande parte da população ficou reduzida a uma miséria ainda maior do que aquela com que vai sobrevivendo.
Tanto despudor só tem paralelo com o que se passa em Mértola, onde a candidatura socialista se move noutras águas, águas turvas de interesses capitalistas, onde avultam nomes como os de Champalimaud, Pereira Coutinho e Stanley Ho. O desmentido do candidato do PS, Mário Martins Martins, vale por si: «Os apoios que temos são-nos concedidos pelo partido a nível central, donde aliás recebemos um tratamento preferencial (sublinhado nosso), e por vários emigrantes que não se conformam com o facto de em Mértola, desde há cinco anos, o município não disponibilizar lotes de terreno para a construção». Uma postura que lhe vale, vai dizendo, o apoio dos gerentes locais da Caixa Geral de Depósitos e da Caixa de Crédito Agrícola, que integram a sua lista. É caso para dizer que ainda o Alqueva vai nas fundações e já ameaça trazer à tona os tubarões, numa enxurrada de interesses espúrios.
Se a tudo isto juntarmos a maré alta de trocas e baldrocas pela conservação dos «tachos», numa promiscuidade que vai para além do admissível, obtem-se um quadro ao mais puro estilo realista da actual política nacional.

Até Dezembro, muita água vai ainda passar por debaixo das pontes. Entre tanta lama e entulho que há-de vir à tona, alguma coisa se há-de salvar. De cara lavada. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1249 - 6.Novembro.97