TELEVISÃO

Exílios cá fora e lá dentro

Por Francisco Costa


«Julho de 1936. Um grupo de jovens rapazes e raparigas encontram-se, como todos os anos, na Figueira da Foz, numas férias à beira do Atlântico. Eles têm entre 17 e 20 anos e preparam-se para entrar na universidade. Do outro lado da fronteira, em Espanha, a guerra civil rebentara e quase se ouvia o estralejar das armas. Na idade de todas as contradições, estes jovens vão viver sob o pano de fundo da guerra um Verão de paixões exacerbadas, entre o amor e a amizade.»

Era assim que o canal franco-alemão Arte resumia o argumento de «Sinais de Fogo», quando há quinze dias transmitiu este filme durante uma emissão toda ela dedicada ao nosso país, designadamente a propósito da literatura portuguesa, então na berra a propósito da Feira do Livro de Frankfurt. E foi também assim que nessa noite mais uma vez nos pudemos orgulhar dos nossos artistas e dos nossos escritores, na circunstância a propósito da obra literária que, com tão grande sensibilidade, o talento do realizador Luís Filipe Rocha fizera transpor para o ecrã, ainda mais por se tratar de temática relacionada com o negro e trágico período da ditadura, aliás tão pouco presente no cinema português, compreensivelmente antes mas estranhamente também depois do 25 de Abril.
E se então o nosso orgulho fora estimulado pela emissão de uma televisão estrangeira, agora foi a RTP 2 que nos recordou, de uma outra maneira, o autor da obra que servira de móbil ao filme, aquele que foi um dos maiores poetas portugueses deste século e cujo inconformismo e desejo de liberdade empurrou, como tantos outros, para o exílio - Jorge de Sena.


Um documento importante

Como terão compreendido, esta introdução vem a propósito do documentário «Jorge de Sena: Uma Fiel Dedicação à Honra de Estar Vivo» transmitido na rubrica «Artes & Letras» do segundo canal do nosso serviço público de televisão no passado domingo, num horário (por uma vez!) decentíssimo.
Realizado por Diana Andringa que, diga-se desde já, mais uma vez se debruçou sobre o percurso de um vulto maior da nossa vida cultural e política, o documentário foi importante a vários níveis: em primeiro lugar pela tarefa cumprida de nos transmitir conhecimento sobre a nossa realidade; em segundo lugar, pela circunstância de nele se abordar o exemplo paradigmático do intelectual que não paira acima de todas as coisas nem se isola na sua torre de marfim, antes desempenha a sua actividade cívica com exemplar dignidade e, mesmo quando longe, sempre demonstrando apego às gentes e às coisas do seu país; em terceiro lugar, porque o filme nos alertou para a injustiça que constituiu o escândalo de o Portugal de Abril praticamente ter ignorado o grande Mestre das letras portuguesas no seu regresso conjuntural ao país recentemente libertado; finalmente, em quarto lugar, pela qualidade inegável de que aquele pedaço de arte documental a todo o momento deu provas.
Começando por este último aspecto, o que importa desde já assinalar é que se revela particularmente complexa entre nós a tarefa de meter ombros a trabalhos documentais como este, precisamente porque durante décadas jamais se cuidou de preservar a nossa memória colectiva, materializando-a de forma sistemática em arquivos de imagens e sons que pudessem constituir precioso acervo para estudos, investigações e trabalhos como este. Precisamente por isso, nunca é demais destacar o cuidado posto por Diana Andringa - cada vez mais à vontade, sublinhe-se, neste tipo de materiais jornalísticos e documentais - na construção de um pano de fundo que melhor pudesse ilustrar o ambiente sócio-político que à época se vivia. Assim, à falta de documentos audiovisuais que nos devolvessem em pleno a presença de Jorge de Sena, a autora deste documentário procurou rodear-se quer de outra documentação (designadamente fac-similada) que nos transmitisse sinais dispersos da autenticidade, quer da encenação de certos momentos da vida do retratado, em particular das recordações da sua meninice e adolescência (com relevante participação do actor Luís Lucas), quer da engenhosa associação deste princípio às impressivas intervenções factuais mas jamais isentas de emoção e admiração por parte de personalidades que, no plano familiar, político ou profissional, estiveram a ele ligadas, com natural destaque para o testemunho de sua mulher Mécia Sena.
Não deixa assim de ser ironicamente significativo que as últimas imagens e sons do rosto e da voz do grande poeta nos tivessem sido facultadas por um excerto de uma sua conversa gravada perante as câmaras nos EUA, com Fred Williams, e realizada em português um mês antes de morrer (04.05.78), precisamente na perspectiva de ela vir a constituir um documento e uma memória viva da passagem de Sena pela «sua» Universidade de Santa Bárbara na Califórnia, onde hoje estão os seus restos mortais.


Uma tragédia americana

Completamente diverso, quanto às possibilidades da sua materialização documental, era o ponto de partida de um outro trabalho jornalístico impressionante, eminentemente televisivo (aliás, inédito nos ecrãs europeus desde a sua realização em 1987) que o Arte transmitiu na passada terça-feira 28. Intitulado «Hollywood No Banco dos Réus», realizado por Judy Chaikin e apresentado por Burt Lancaster, o documentário debruçava-se sobre os reflexos na indústria e na profissão cinematográfica norte-americana de um dos períodos mais negros da História dos EUA - a «caça às bruxas», a escalada anticomunista mais abjecta a que aquela sociedade esteve sujeita, em particular entre 1947 e 1954, no período em que nasceu a guerra-fria e foi tristemente assinalado pela passagem pelo poder do tristemente célebre senador McCarthy. Também aqui se tratou de retratar a dignidade cívica, numa peça de jornalismo audiovisual já não centrada num homem mas num grupo de homens sobre os quais recaiu a sanha persecutória do poder mais reaccionário - os chamados Dez de Hollywood, os argumentistas Alvah Bessie, Lester Cole, Ring Lardner, Jr., John Howard Lawson, Albert Maltz, Samuel Ornitz e Dalton Trumbo, os realizadores Edward Dmytryk e Herbert Biberman e o produtor Adrian Scott.
Tudo começara em finais dos anos 30, quando o Congresso dos EUA instituíra uma Comissão Especial sobre as Actividades Anti-Americanas, substituída, em 1945, por um outro organismo semelhante cuja tarefa era investigar centros de comunicação americanos, como universidades, círculos literários e, sobretudo, a indústria cinematográfica. Na perspectiva de espalhar uma situação persecutória perante uma atmosfera de pânico que pudesse ganhar aceitação na opinião pública, as investigações e os interrogatórios levados a cabo por esta Comissão foram filmados e gravados e largamente publicitados e neles podem ver-se figuras carismáticas da 7ª. arte - como Gary Coopper, Robert Taylor, Adolphe Menjou, Elia Kazan, Lloyd Bridges ou Lee J. Cobb - desempenharem vergonhosamente o papel de denunciantes face aos seus colegas de profissão, alegadamente acusados de envolvimento em «actividades subversivas» ligadas directa ou indirectamente ao Partido Comunista Americano.
Assim se criava uma atmosfera de histeria e paranóia colectiva que caracterizou estes anos dolorosos e cuja consequência directa foi o desemprego para actores que jamais puderam prosseguir a sua carreira ou a perseguição e suspeita recaída sobre realizadores e argumentistas que se viram forçados ao exílio no seu próprio país ou à situação de semi-clandestinidade consubstanciada na assinatura dos seus trabalhos com nomes falsos, a ponto de determinados Óscares terem sido entregues postumamente às suas viúvas, como aconteceu, entre tantos outros exemplos, em 1985, com os prémios relativos a Michael Wilson e Carl Foreman pelo argumento de «A Ponte do Rio Kwai» (uma produção de 1957!). O cortejo de carreiras arruinadas, de vidas familiares destroçadas e de amizades destruídas para sempre - que perpassa por todo o documentário - só viria a interromper-se pela primeira vez nos anos 60, quando o actor-produtor Kirk Douglas e o realizador-produtor Otto Preminger voltaram a chamar o argumentista Dalton Trumbo para escrever os argumentos de «Spartacus» ou «Exodus». Terminava assim o período da «lista negra», dos «canais vermelhos», que este documentário, ricamente construído a partir de imagens e sons de preciosos arquivos, com tanta frontalidade denuncia, ao mesmo tempo que destaca a postura de dignidade de outros profissionais de Hollywood que se recusaram a pactuar com este estado de coisas, como, entre muitos outros, Edward G. Robinson, John Garfield, Katharine Hepburn, Danny Kaye, Lauren Bacall ou Humphrey Bacall, cuja declaração ouvida em off constitui a devolução mais firme de um implacável libelo acusatório:

«Estão a ouvir Humphrey Bogart. Estivemos na sala da Comissão e assistimos ao que se passou. E dissemos para nós próprios: "Não é possível!". Vimos cidadãos eleitos impedir a outros cidadãos compatriotas o direito de se exprimir. Vimos a polícia tratá-los como criminosos, quando lhes foi recusado o direito de se defenderem. Vimos o Presidente da Comissão mandar calar cidadãos americanos. Os ecos desse martelo, Mr. Thomas, ressoa pelo país, porque cada pancada desse martelo atinge a Constituição dos Estados Unidos da América.».

Para que não esqueça.


«Avante!» Nº 1249 - 6.Novembro.97