A TALHE DE FOICE

Viva!


Pronto, acabou-se. Quer dizer, ainda não acabou propriamente, mas é quase como se já tivesse acabado. Durante uns dias, como é da praxe, toda a gente vai continuar a fazer balanços, contabilizar ganhos e perdas, vaticinar desenvolvimentos futuros, perspectivar alternativas. Mas o que tinha de ser já foi, e por mais voltas que se lhe dê o assunto está encerrado.

Inexoravelmente, com a lógica das coisas que ninguém questiona, o calendário conduz-nos para os ritos de mudança com que todos os anos se invoca o que foi para melhor se enfrentar o que será. É o tempo das festas num tempo em que escasseiam cada vez mais as razões para festejar, o que significa naturalmente que rijas devem ser as festividades. A contradição é só aparente. Fala-se alto e muito quanto menos se tem para dizer, enebriam-se os sentidos quanto menos sentido se encontra no percurso, convocam-se as fanfarras quando se torna insuportável o silêncio.

Há pois que festejar quando se chega ao fim. Porque o fim é sempre um princípio, seja lá do que for, e é preciso recomeçar o melhor possível. A história colectiva está cheia de exemplos desta necessidade elementar, e o que não faltam são ditos para ilustrar a questão. Mais vale tarde do que nunca, não há duas sem três, quem espera sempre alcança, entre mortos e vivos alguém há-de escapar, para a frente é que é o caminho, não adianta chorar sobre o leite derramado...

Tudo formas de dizer que amanhã é outro dia, como se o não soubéssemos, ou como se valesse de alguma coisa pretender ficar parado ou voltar para trás.

O que tem de ser tem muita força. O bicho homem, porque é estranho, é que inventa atalhos para se meter em trabalhos, dando-se assim razões de queixa. Mas porque um homem não é de ferro, houve que inventar os rituais de passagem, ou seja, as festas. Íntimas umas, colectivas outras, elas aí estão à porta, sinal seguro de que não há nada que enganar, o ano está a chegar ao fim.

Na pressa de enterrar o velho para saudar o novo não falta quem faça tempestades em copos de água, esquecendo que semear ventos dá para colher tempestades. Tanto barulho para nada, afinal, que os anos são mesmo assim, uns atrás dos outros. Na gula da festa, há quem se empanzine, mas o que há mais é quem acredite que guardado está o bocado para quem o há-de comer. A ver vamos, como dizia o cego, cansado de saber que em terra de cegos quem tem um olho é rei.

Não estou a falar de política, evidentemente. Deixemos isso para os analistas, que também para eles o tempo é de fartura.

Estou a falar do Natal e do Ano Novo, dos presentes, dos almoços e jantares em família, das festas com os amigos, do perú e do bacalhau, das filhoses e do bolo rei, das amenas discussões à volta da mesa, da impaciência das crianças, da tolerância dos adultos, das toalhas de renda em casa das avós, do papel colorido nos caixotes do lixo, do bater de panelas e dos foguetes a afugentar os maus espíritos e a saudar o novo ano.

Estou a falar da História que ainda não acabou e da imensa capacidade humana de se reinventar todos os dias.

Estou a falar da coragem e da esperança que mantém viva a chama por um futuro melhor.

Estou a falar dos homens e das mulheres que somos nós, os que sabem que o amanhã se constrói todos os dias.

O ano velho já deu o que tinha a dar. Viva o Ano Novo! — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1255 - 18.Dezembro.97