Regime disciplinar nas escolas
Discurso do Governo
desfasado da realidade


O projecto de decreto-lei sobre o novo regime disciplinar nas escolas esteve em debate no Parlamento. A discussão não se confinou aos estreitos limites do diploma, acabando por trazer para primeiro plano outras áreas essenciais do sistema educativo. Neste capítulo, patente ficou como têm sido exíguas as medidas do Governo no sentido de uma escola pública de qualidade. Mas o debate constituiu-se ainda num momento para o PP, de quem partiu a iniciativa de o promover com carácter de urgência, revelar até que ponto vai a matriz reaccionária do seu pensamento.

A concepção de uma escola repressiva marcou, com efeito, de modo profundo, o discurso da bancada do PP, com a sua líder parlamentar, Maria José Nogueira Pinto. a defender, referindo-se aos alunos indisciplinados, que "quem não está sistematicamente predisposto a aprender, não pode ser ensinado".

Explicitando o seu ponto de vista, afirmou mesmo que um aluno nestas condições "é alguém que vitimiza diariamente os educáveis - que são a maioria - e perturba o esforço colectivo que torna possível o funcionamento do própria sistema". acrescentou.
Para a deputada do PP, a escola fez-se para ensinar a ler, escrever, contar e também se possível para ensinar a raciocinar, a pensar e a referenciar, entendendo por isso que o aluno mal comportado não é uma vítima, mas antes vitimiza os outros - "os que querem educar e os que querem ser educados".
"Quem não cumpre porque não quer cumprir deve ser excluido. Passará assim a sua oportunidade - que todos nós lhe demos e que ele desbaratou - a outro que a mereça igualmente em teoria e, decerto bem mais na prática", disse.

Reagindo a este discurso, Manuel Alegre considerou-o um dos "mais "conservadores, reaccionários e mais à direita" que alguma vez ouviu na Assembleia da República, admitindo que "talvez nem mesmo Salazar tenha levado tão longe o seu cepticismo em relação à natureza humana".

À natureza retrógrada da posição do PP aludiu também a deputada comunista Luísa Mesquita ao assinalar que à mesma está subjacente o desejo de ver incrementada uma "escola repressiva", partindo para o efeito do pressuposto que "o problema fundamental do sistema educativo é a insurreição disciplinar nas escolas portuguesas".
Separando as águas, a parlamentar comunista lembrou que "hoje, em matéria de educação e pedagogia, o objectivo fundamental é assegurar às crianças e aos jovens uma formação que tenha em conta a sua personalidade, o seu futuro e o reforço do respeito dos direitos e liberdades fundamentais".
Um objectivo que todavia ainda está longe de ser cumprido, como assinalou Luísa Mesquita, devido sobretudo à inadequação das medidas adoptadas pelo Governo PS, o que tem permitido, sublinhou, que alguns apresentem " propostas que põem em causa a defesa da escola pública e de qualidade", questionando simultaneamente "o direito à educação e ao ensino em condições de igualdade de oportunidade de acesso e sucesso escolares".

Mas foi na reflexão concreta sobre o conteúdo do diploma que a parlamentar do PCP desenvolveu a sua intervenção, tecendo várias críticas não apenas à metodologia adoptada pelo Ministério da Educação, como à validade pedagógica do texto legislativo em debate.
Verberado, no primeiro caso, foi a falta de informação prévia do diploma aos outros agentes no processo educativo, designadamente aos sindicatos, às associações representativas dos professores, dos pais e encarregados de educação, dos alunos, ou, como observou, "simplesmente enviar o documento para as escolas, atempadamente".
Quanto à substância do diploma, na perspectiva de Luísa Mesquita, trata-se, no mínimo, de "um texto de literatura surrealista" na medida em que, especificou, "é inconcebível" que, segundo os seus autores, o objectivo de construir uma escola de qualidade "passe sumariamente pela estratégia da normalização das regras de conduta dos alunos, ou pela punição dos mesmo, quando os normativos não forem cumpridos".
Este é, com efeito, um traço marcante no diploma, como o próprio Ministro da Educação reconheceu ao assinalar no decorrer do debate que a proposta do Governo assenta num regime de autoridade e de reforço da mesma.
"Só reforçando a autoridade do professor e dos professores é possível ter um regime de disciplina e essa autoridade resolve-se através do esquema organizativo da escola. Cada escola tem de ter o seu regime disciplinar porque cada escola tem a sua comunidade e os seus problemas", disse.
Mas mesmo ao nível do código de conduta explicíto no regulamento da escola existem sérios motivos para duvidar do seu realismo, segundo a parlamentar comunista. Exemplificando, assinalou a passagem no preâmbulo do diploma em que se refere a necessidade de "respostas claras, consistentes e sistemáticas da escola, da família e da comunidade", concluíndo a este respeito ser muito problemático encontrar tais respostas nas escolas sem biblioteca, sem espaços próprios para os alunos ou com salas sobrelotadas, nas famílias que se confrontam diariamente com problemas de desemprego, de habitação ou de pobreza, ou nas comunidades onde são inexistentes as instituições especializadas e apetrechadas para enfrentar as consequências dessas situações ou resolver as suas causas.
Em suma, para Luísa Mesquita, existe uma completa "ausência de sentido entre o discurso do diploma e a realidade do País", a que acresce, noutro plano, a deliberada intenção do Governo de "enviar para a escola e para a família todas as responsabilidades na resolução dos problemas", desresponsabilizando-se ele próprio, simultaneamente, "cada vez mais da construção de uma escola pública de qualidade".

O PSD, por sua vez, pela voz de Castro Almeida, fez saber que caso o projecto de diploma seja aprovado pelo Governo avançará com um pedido de ratificação que será acompanhado de uma proposta alternativa. Para a bancada laranja, o documento governamental não só retira ao professor toda e qualquer competência disciplinar como aumenta a burocracia nos processos disciplinares.


«Avante!» Nº 1259 - 15.Janeiro.98