A TALHE DE FOICE

Lógicas


Não sei se ainda alguém se lembra que Vasco Pulido Valente (VPV) teve uma breve e apagadíssima passagem pela Assembleia da República, de onde saiu, segundo consta, enjoado com a falta de requinte das casas de banho e a pobreza franciscana do serviço de bar. O país nem chegou a saber o que valia como tribuno, porque VPV entrou mudo e saiu calado, quiçá ainda mais enjoado com tantas línguas afiadas que não desdenhariam de com ele esgrimir argumentos e de reduzir a pó os seus intrincados raciocínios. Perdido o deputado, ficou o escriba, o que não sendo obrigatoriamente uma vitória das letras, é de certo uma fonte pródiga a alimentar saudades fascizantes.

Tome-se, por exemplo, o escrito que deu à estampa no «Independente» de 9 de Janeiro, com honras de primeira página, sob o título «Tudo muito lógico». VPV reporta-se ao que classifica de «um curioso regresso aos costumes de 1975», a saber, a ocupação da fábrica Cabos Ávila pelos trabalhadores.

Com a fineza de estilo que o caracteriza, VPV relata como os trabalhadores resolveram vigiar a referida fábrica «a fim de evitar qualquer conspiração capitalistas», como identificaram a dita na intenção da administradora da empresa, Teresa de Ávila, pretender remover «documentos» das instalações, e como esse «feio acto» foi impedido com a ocupação da fábrica e o sequestro da «maléfica dama». Depois de informar que «os trabalhadores acham que a empresa é viável e querem que o Estado tome conta dela», VPV aponta o dedo acusador aos «vários e gravosos crimes» por eles cometidos e insurge-se contra o facto de no local não ter aparecido «um único polícia», «nem à tarde, nem à noite, quando o proletariado se aquecia a uma fogueira improvisada». Tudo motivos de sobra para VPV invectivar Guterres que «não gosta de bater no povo», escarner de Marcelo por ter pedido a demissão do ministro da Justiça, e rematar a prosa com a conclusão de que é «tudo muito lógico, graças a Deus».

Nem uma palavra para o facto de os trabalhadores da Cabos de Ávila terem os salários de Novembro e Dezembro, incluindo o subsídio de Natal, em atraso.

Nem uma linha para o facto de a empresa ter outras dívidas diversas aos trabalhadores.

Nem uma referência às dívidas aos fornecedores.

Nem uma reflexão para as dívidas ao Estado, principal credor da empresa.

Nem um apontamento para o drama daquelas famílias que têm na Cabos de Ávila a sua única fonte de sobrevivência.

Nem uma interrogação de como é que se come todos os dias, de como é que se vive, quando o mês começa e acaba sem salário.

Nem uma réstea de solidariedade humana para com o desespero de quem luta pela sobrevivência.

Que para VPV a vida dos trabalhadores seja um mistério, até se compreende. O que não se compreende é essa raiva, esse ódio que o leva a querer ver a polícia a espancar quem luta pelo legítimo direito ao seu salário.

Talvez VPV se identifique com o género de ricos a que pertence a srª Ávila: os que vivem da exploração alheia, fazendo de conta de que nem sequer existem os que lhe produzem a riqueza, essa gente com tanta falta de chá... ou de whisky, para o caso tanto faz. Quem se enjoa com os pastéis de bacalhau ou com os toalhetes de papel da AR não deve poder suportar o suor do trabalho. Afinal, é tudo muito lógico. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1259 - 15.Janeiro.98