TV

Reestruturar, disse ele

Por Correia da Fonseca


Arrancou há dias a RTP-África. Já rotulada como «o maior instrumento de cooperação que Portugal tem».
Por mim, acolho com reserva, talvez até com surpresa, uma caracterização tão eufórica. Acho que se a cooperação com as antigas colónias africanas não encontra outras vias, mais directa e eficazmente ligadas a aspectos fundamentais, mal estarão as coisas. Mas é claro, sem dúvida, que a RTP-África tem muitas probabilidades de se tornar uma relevante presença cultural portuguesa nesses países. Se conseguir uma audiência significativa que ultrapassa largamente os núcleos de cooperantes e afins. Se as suas emissões não perderem de vista a necessidade de conciliarem acessibilidade e capacidade de atracção com dignidade. Se se aproximarem do melhor que o País tem para dar e se afastarem do que tem tido de pior para consumir.

O arranque da RTP-África coincidiu com a saída do ministro Jorge Coelho da tutela da televisão pública, que passou para José Sócrates, pelo menos segundo foi anunciado. Jorge Coelho surgiu nesse dia como se a RTP-África tivesse sido obra sua, o que se justificará ou não, e deu uma entrevista que, usando-se uma excessiva fórmula convencional, poderá ser designada como o seu testamento político para o sector. Não é fácil encontrar nela muitas coisas interessantes. A sua tónica, aliás chamada para título, é a já muitas vezes proclamada necessidade de reestruturação da Radiotelevisão Portuguesa, nela parecendo situar-se implícita se não explicitamente a chave para todos os males que a RTP ostenta, mais os que também lá estão ainda que de modo não ostensivo. Ora, este é um «discurso» que me inquieta. Com razão ou sem ela, suspeitoso de ser um estratagema vocabular, de raiz tecnocrática, para iludir a escandalosa deserção da RTP frente aos seus deveres elementares e óbvios, substituindo-os por questões do foro administrativo.


Empresa,
mas não qualquer

Acredito, naturalmente, na necessidade verdadeiramente imperiosa de uma reestruturação da RTP, empresa que, segundo o ministro, «tem a mesma estrutura que tinha há quarenta anos». Porém, começo a ficar preocupado quando Jorge Coelho diz que «a RTP tem de ser modificada de modo a atingir os objectivos que qualquer empresa tem», e isto sem ao menos acrescentar expressamente que a RTP não é uma «empresa qualquer», muito antes pelo contrário. Por outro lado, sabendo-se dos hábitos dominantes e de como as coisas se fazem, é inevitável que ao ouvir falar de reestruturação eu comece a pensar em «emagrecimento», que é o eufemismo neoliberal para designar os despedimentos, e em esquartejamento, operação correntemente disfarçada com palavras como «descentralização», «mobilidade» e «autonomização». O ministro falou na criação de uma «holding», o que tem todo o ar de já ser um indício claro. Tanto quanto julgo saber, a fragmentação e gestão em «holding» pode ter diversas vantagens e vários inconvenientes, mas uma sua característica regular é a emergência de vários níveis de gestão em contraponto com a redução drástica e quase sempre cruel dos sectores de planeamento, execução e controlo.

É claro para mim, como aliás para toda a gente que minimamente se interessa pelo assunto, que a RTP tem pessoal a mais. A mais «tout court», passe o pretensiosismo da expressão, e a mais em relação às tarefas que executa. Quanto ao primeiro caso, seria coisa de muito espantar que ao longo de quarenta anos a burocracia interna não se tivesse multiplicado em tentáculos inúteis, não tivesse segregado tarefas perfeitamente dispensáveis que por sua vez exigiram mais gente que cedo segregou novas tarefas numa espiral de empolamento administrativo que os tratados da especialidade denunciam. Quanto à relação entre meios humanos e trabalhos a realizar, porém, é preciso cuidado: torna-se indispensável apurar se a RTP não terá por lá muita gente, e gente excelente, que há muito está subutilizada ou de todo não-utílizada enquanto tarefas que lhe caberia executar são confiadas por encomenda a empresas exteriores. Nesse caso, será não só errado mas também enganoso falar de gente a mais: trata-se é de trabalho a menos E, além disto, de produtos pagos a dobrar com custos fixos que se mantêm na RTP e custos pagos a empresas estranhas que, ao que consta, por vezes até utilizam meios materiais da própria RTP.


Os custos insuportáveis

Porém, o que de mais grave decorre das palavras de Jorge Coelho, destas que proferiu agora e de outras anteriores, é que, perante a escandalosa realidade quotidiana de uma televisão que todos os dias falta a deveres fundamentais que lhe cabem, só se lembre da necessidade de uma reestruturação administrativa. A questão é simples: esta televisão não presta.

Não presta porque não responde às efectivas carências dos telespectadores portugueses, isto é, do País, preferindo brincar ao jogo das concorrências com a menina SIC, jogo em que aliás perde sempre porque, além de outros factores, tem de manter uma vergonha mínima, ao passo que a SIC está à vontade para não ter vergonha nenhuma, o que neste jogo é decisivo. Não presta porque sistematicamente relega para um secundaríssimo plano os programas de qualidade que lhe caem nas mãos, o que muitas vezes consubstancia a prática de autênticos crimes contra o interesse nacional em matéria de cultura. Não presta porque continua a acumular prejuízos mais cedo ou mais tarde pagos pelo Orçamento do Estado, directa ou indirectamente, sendo que tais custos nacionais não servem para subsidiar a utilidade pública, o que seria aceitável, mas sim para dar cobertura financeira à nocividade pública, o que é imoral a ponto de se tornar repugnante.

Parece evidente que estes aspectos, aliás entre outros, que têm a ver com os programas, isto é, como a alimentação diária do fluxo televisivo que é despejado em nossas casas, devia merecer a atenção e a preocupação prioritárias do ministro. É decerto bom falar em reestruturações, está muito na moda e cai lindamente, mas é um pouco tonto reestruturar sem se saber bem para quê. O mesmo é dizer: sem fixar objectivos. Ora, os objectivos de uma estação de TV de capitais estatais, pela sua própria natureza comprometida com o serviço público, quer dizer, com o interesse nacional, têm de se situar antes de .tudo nos programas e só depois, e em função deles, nos métodos e nos custos.

A mais barata das televisões cretinizantes tem custos que um país não deve nem pode suportar. Uma televisão que intervenha positivamente para que se vençam as grandes batalhas nacionais será sempre menos cara do que parece.

Dir-se-ia que o ministro, que abandonou agora a tutela da RTP, nunca pensou nisto. É assustador. Um optimista esperará que o seu sucessor encare de forma diferente e melhor a RTP e os seus problemas. Abre-se aqui a inscrição de optimistas que acreditem nesse sonho bonito.


«Avante!» Nº 1259 - 15.Janeiro.98