Cuba
A visita de João Paulo II


O papa João Paulo II iniciou ontem a sua primeira deslocação a Cuba, numa visita que terminará no domingo. No total, realizam-se quatro missas e são pronunciados nove discursos públicos.

Para Fidel Castro, não se trata de uma visita política, apesar de João Paulo ser o chefe de Estado do Vaticano. «Esta é uma visita pastoral, quer dizer, não é uma visita política. Além disso, o papa é um convidado do país, um convidado do governo», afirmou recentemente no Parlamento. «Não temos a menor intenção, em todas as nossas conversações com os emissários do Vaticano, de dar conteúdo político à visita», acrescentou.
O sucesso da visita pastoral é objectivo do dirigente cubano: «Faremos o máximo para que a visita seja um êxito e para que o papa se possa sentir plenamente satisfeito. Temos consciência de quais são os nossos deveres».

Quanto à condenação por João Paulo II do bloqueio dos EUA contra Cuba, Fidel Castro salientou que não foi posta nenhuma condição. «Por um elementar sentido de dignidade, o nosso país não podia fazer isso, não podemos organizar e fazer o máximo esforço por uma visita e acompanhá-la com a solicitação de uma declaração contra o bloqueio». Referindo-se ao papa, defendeu que «ele deve sentir-se absolutamente livre para fazer as declarações que considere pertinente fazer».

No sábado passado, Fidel apelou à população para assistir às missas e às cerimónias que decorrem durante a visita, não «por disciplina», mas por respeito por João Paulo. Pediu ainda para que ninguém ceda a provocações ou exiba qualquer cartaz. «Ninguém deve exprimir a menor reacção de protesto face a nenhuma declaração», afirmou.
«Vemos como uma honra a visita do papa, vemo-la como um gesto de coragem. Vem a Cuba, nada menos que a Cuba», sustentou Fidel no Parlamento. «Faremos tudo o que seja humanamento possível para que se sinta bem e satisfeito com a visita e conheça, como muitos outros visitantes, o nosso país e o nosso povo», declarou.
Na opinião do líder cubano, «trata-se de uma personalidade que tem uma grande influência em todo o mundo ocidental e particularmente na América Latina». «O papa é uma das personalidades mais relevantes no mundo actual. É por isso que a visita despertou um grande interesse a nível internacional».

Mais de mil jornalistas foram creditados pelas autoridades de Havana. Cinco das mais importantes cadeias televisivas norte-americanas cobrem o acontecimento. Uma delas, pediu alojamento para 200 funcionários.


Helms-Burton na ordem do dia

A cláusula da lei Helms-Burton que penaliza as sociedades que realizem negócios com Cuba continua suspensa. Na sexta-feira, pela terceira vez, o presidente dos Estados Unidos prorrogou por mais seis meses a sua suspensão, o que significa que os cidadãos norte-americanos continuam a não poder recorrer à justiça contra empresas que comprem bens expropriados pelo governo cubano após a revolução de 1959.
Esta cláusula, se entrar em vigor, proíbe ainda a entrada nos EUA dos principais dirigentes dessas companhias, bem como aos seus familiares, tendo como objectivo explícito dissuadir quaisquer investimentos em Cuba.

Foram recentemente apresentados no Congresso projectos-lei para o levantamento de algumas claúsulas, nomeadamente aquelas que se referem a medicamentos e alimentos.
Para Charles Rangeel, o representante do Partido Democrata de Nova Iorque e um dos autores de um desses projectos, a visita de João Paulo II oferece uma oportunidade «para nos empenharmos de forma construtiva nos progressos concretos nas relações americano-cubanas».

O embargo dos EUA continua a ser alvo das críticas internacionais. Na semana passada, a sub-secretária dos Negócios Estrangeiros italiana, Patrizia Toia, considerou que Cuba, ao contrário das pretensões norte-americanas, «não pode ficar isolada do contexto internacional». «O isolamento é uma estratégia de míope que não dá frutos e que não ajuda a resolver os problemas», acrescentou.

________


As expectativas

Quando a presente edição do " Avante " começar a circular estará já em decurso a visita que João Paulo II realiza à República Cubana. A viagem pontifícia tem garantida uma vasta cobertura mediática e em torno dela estão criadas amplas espectativas especulativas que, como sempre, só o futuro real virá confirmar, ou não.

Se nos situarmos rigorosamente na análise noticiosa que nos vai chegando, com exclusão de qualquer tentativa de previsões a curto prazo, poderemos detectar alguns aspectos que, com efeito, parecem singularizar esta viagem no enorme lote das restantes outras 80 já anteriormente efectuadas pelo actual papa.

Numa primeira análise, desapaixonada, avultam os aspectos que parecem favorecer claramente os legítimos interesses, direitos e aspirações do heróico povo cubano.
Por um lado, como é notório, as negociações, diplomáticas ou de outra ordem, que precederam a concretização desta visita papal, arrastaram-se por longo tempo, com avanços e recuos, comprometimentos e concessões. Feito agora o balanço provisório do processo que permitiu uma aproximação final de pontos de vista, o resultado apurado parece consagrar um êxito da diplomacia cubana. Com efeito, se nos situarmos a partir dos objectivos conhecidos das políticas da Secretaria de Estado do Vaticano, facilmente concluiremos que a visita de João Paulo II teria perspectivas políticas muito mais favoráveis se tivesse tido lugar logo após a desagregação dos estados socialistas do Leste europeu.

Não foi assim e agora a viagem do papa decorre em quadros internacionais - políticos, económicos, confessionais e sociais - já bem diferentes.

Também a imagem de uma igreja triunfante, que o Vaticano, há cerca de dez anos teria facilidade em transmitir à opinião pública, sofreu um grande desgaste. Na Europa, a igreja institucional não conseguiu avançar em termos pastorais e revelou-se, em muitos casos, corrupta e incapaz de solucionar os seus problemas internos. Aliás, é cada vez mais evidente que à progressão do neoliberalismo, político e económico, tem correspondido a degradação da imagem de uma igreja católica europeia cada vez mais descrente de si própria. Nos outros continentes, o governo do Vaticano, não obstante os excessos de autoridade revelados nas acções duramente centralizadoras de João Paulo II e do Opus Dei, não foi capaz de evitar a afirmação popular de uma outra igreja de novo tipo, eclesialmente apoiada nas leituras da Teologia da Libertação. Independentemente dos aspectos mediáticos, João Paulo II vai ser um estranho entre os seus.

Há um outro aspecto interessante que concorre para debilitar o peso político que o Vaticano poderia alcançar junto da opinião pública, sobretudo da latino-americana. Desde há 35 anos que o povo cubano é vítima de um dos mais ferozes crimes contra os mais básicos direitos humanos. O bloqueio económico de que é alvo traduz-se em fome, em doença, em sofrimento e morte. Perante esta afrontosa situação, o magistério de João Paulo II tem recorrido ao artifício das meias palavras, das exortações, e pouco mais.

Como poderá a igreja institucional apresentar-se, agora, como campeã dos liberdades dos povos ?

Bem ao invés, a imagem do regime cubano não tem deixado de se valorizar junto da opinião pública comum. Quem, afinal, continuará a aceitar que a Revolução Cubana é o " império do mal ", se é justamente o povo de Cuba, os seus órgãos dirigentes e o seu Partido, a força que, na América Latina mais organizadamente se bate em defesa dos mais altos valores morais tão gratos às populações humildes, como os da Pátria, da Liberdade e da Justiça Social ? Também esta verificação irá contribuir para o reforço do peso relativo da presença oficial cubana nos resultados palpáveis desta viagem do papa.

Vários outros factores poderiam ser aqui referidos, a acentuar os contornos originais desta digressão por terras cubanas. A instabilidade que sempre acompanha as sucessões dos papas e as alterações, cada vez mais próximas, das hierarquias católicas ; as pressões, que começam a ser notícia, exercidas por "lobbies" dominantes da administração norte-americana, agora favoráveis à adopção de alternativas à política de bloqueio, após verificarem que a sua manutenção cconstitui um autêntico sorvedoiro financeiro, insustentável para a economia dos EUA ; a percepção que, mesmo os mais ferozes grupos " anti-castristas ", intimamente ligados às oligarquias financeiras, de que a presente política norte-americana é responsável pela perda em série de grandes negócios, desviados para grupos capitalistas rivais menos fundamentalistas, etc.

Tudo isto parece favorecer, na presente conjuntura, as justas reivindicações da sociedade cubana, certamente presentes nas negociações que sempre decorrem nos bastidores das viagens de João Paulo II.

Mas não nos deixemos tentar por optimismos excessivos. Todos os contactos com o Vaticano, na sua forma actual, contêm um elevado índice de riscos potenciais. A Secretaria de Estado tem séculos de preparação e é reconhecidamente perita na prática das políticas paralelas.
Só o tempo revelará que importância se poderá creditar a esta visita a Cuba dos mais altos dirigentes católicos. — Jorge Messias


«Avante!» Nº 1260 - 22.Janeiro.98