EM FOCO
Tigres asiáticos nas garras do FMI
Por Carlos Nabais
A profunda crise económica que se instalou nas chamadas economias emergentes da Ásia veio provar mais uma vez o fracasso das teses neoliberais que, após a queda do bloco socialista, anunciavam os anos noventa como a segunda grande época do capitalismo mundial, logo a seguir ao final do século XIX.
Como refere a edição mensal
de Janeiro do Monde Diplomatique, num artigo assinado pelo
jornalista Philip Golub, «a globalização financeira, concebida
pela revolução conservadora americana e
britânica no início dos anos 80, autonomizou a esfera
financeira, submetendo a economia real à sua lógica».
Em consequência, explica o mesmo autor, o divórcio entre as
moedas e a realidade económica nunca foi tão grande na
história contemporânea, bem expresso no aumento vertiginoso do
volume dos fluxos internacionais de capitais que não se fez
acompanhar de um aumento correspondente do valor das
transacções comerciais.
Assim, hoje são diariamente transaccionados 15 biliões de
dólares nos mercados de divisas, contra apenas 18 mil milhões
no início da década de 70, dos quais apenas três por cento
correspondem ao valor dos bens e serviços realmente
transaccionados.
Philip Golub observa igualmente que «demitindo-se da sua
principal responsabilidade - a regulação da violência nas
relações sociais tendo em vista o bem comum - e consentindo
severas mutilações na sua soberania, os Estados reduziram não
só o espaço democrático, através da submissão da evolução
social, económica e política à contingência dos interesses
particulares, como também eles mesmos se privaram dos meios de
influenciar o sistema internacional».
Num universo financeiro caracterizado pela anarquia monetária e não pela auto-regulação como pretendem os defensores do neoliberalismo, a mundialização engendra crises financeiras com graves reacções em cadeia que são frequentemente comparadas doenças epidémicas ou a catástrofes naturais.
História de uma crise
Provocado pela retirada
maciça de capitais especulativos, o sismo financeiro asiático
é hoje visto como o mais grave dos últimos anos, cujos reflexos
põem em causa não só o crescimento dos países da região como
constituem sérias ameaças às economias ocidentais.
Despoletada na Tailândia, a onda de choque cedo se propagou aos
países vizinhos e a sua intensidade não parou de crescer,
submergindo no passado mês de Outubro todo o sudeste asiático.
Pouco depois era a Coreia do sul - a 11ª economia mundial - que
ficava à beira da bancarrota e os efeitos negativos fizeram-se
sentir ainda em praças financeiras periféricas como as do
Brasil e da Rússia. Chegou-se a pensar que o Japão - segunda
economia mundial e primeiro credor do planeta - pudesse ser
seriamente afectado, possibilidade que de resto ainda se mantém.
Ao contrário do que se podia esperar, desta vez as técnicas
tradicionais de gestão da crise, como a intervenção dos bancos
centrais ou a suspensão automática das cotações, de nada
valeram e os mercados bolsistas dos países atingidos continuaram
a sofrer drásticas desvalorizações.
Para evitar o afundamento dos sistemas bancários, países como a
Tailândia, Filipinas, Indonésia e a Coreia do Sul foram
obrigados a aceitar a intervenção do Fundo Monetário
Internacional e a submeter-se aos implacáveis programas de
reestruturação de efeitos recessivos, que já hoje suscitam o
protesto das populações devido aos impactos económicos e
sociais desastrosos.
Sem solução à vista
Mas mesmo a intervenção
financeira do FMI, a mais importante desde a criação do Fundo
em 1944, não foi capaz de deter ou mesmo atenuar as desordens
asiáticas. Recorde-se que os empréstimos do FMI à Tailândia,
Indonésia e à Coreia do Sul totalizam cerca de 210 mil milhões
de dólares.
Contudo, apesar deste volumoso programa de emergência, uma nova
vaga especulativa no passado mês de Dezembro, provocada por uma
série de falências no sector privado, esteve na origem da queda
espectacular dos mercados da Coreia. A moeda coreana, o won,
atingiu o mais baixo nível de sempre face ao dólar
norte-americano, sendo precisos dois mil wons para comprar um
dólar, contra os 890 wons necessários em Julho de 1997 para um
dólar.
Apesar desta enorme desvalorização, o FMI impôs que a Coreia
mantenha uma taxa de inflação de 5 por cento, quando, em
contrapartida, a taxa de juro de curto prazo atingia, em
Dezembro, 25 por cento, ou seja, o mais elevado nível desde há
16 anos. Em resultado, às empresas fortemente endividadas e sem
possibilidades de recorrer ao crédito, apenas resta a
declaração de falência que, por seu turno, se traduz no
aumento do volume de créditos incobráveis pelos bancos.
Estes são sinais de uma grave crise que pode terminar numa
deflação, ou seja, na baixa de preços, de salários, de lucros
e do crescimento, conduzindo a uma grave recessão económica.
Japão pode ser arrastado
Segundo os analistas, a
possibilidade do Japão ser arrastado na crise asiática é real.
De facto, os bancos nipónicos, os maiores credores da região,
têm sofrido fortes revezes nos últimos meses não só devido à
crise asiática, como às próprias dificuldades internas.
Segundo estimativas da imprensa japonesa, o sistema bancário
japonês contabiliza mais de 600 mil milhões de dólares em
créditos incobráveis ou dificilmente cobráveis. Deste modo, a
falência de mais bancos nos países emergentes acarretaria
efeitos semelhantes no país do sol nascente.
Acontece que se o Japão começar a desinvestir no mercado
americano para fazer face às suas necessidades internas e
relançar a sua economia, as consequências serão
imprevisíveis. É que desde os anos 80 que o Japão é o maior
credor dos Estados Unidos, detendo qualquer coisa como 320 mil
milhões de dólares em obrigações do Estado Federal, ou seja
8,5 por cento do total.
Por outro lado, a continuação da depreciação do yen (no final
de 1997, a moeda japonesa atingiu o seu mais baixo nível desde
há cinco anos), dada como certa nos próximos meses, irá
aumentar a competitividade das exportações japonesas,
aumentando ainda mais o excedente comercial do Japão.
Neste clima, é natural que as tensões comerciais
nipónico-americanas se agravem, tanto mais que Washington já
advertiu o Japão no sentido deste adoptar medidas enérgicas
para diminuir o seu excedente comercial e abrir o seu mercado
interno.
Há mesmo quem veja no actual comportamento dos Estados Unidos a
tentativa de instrumentalizar a crise para dela tirar
unilateralmente vantagens estratégicas e comerciais. A verdade
é que até ao momento, a administração norte-americana entende
que devem ser o Japão e os países do sudeste asiático a
suportar o principal ónus da desordem vigente. Segundo
declarações do secretário americano do Comércio, William
Daley, o Japão terá de sair da recessão através de «factores
de crescimento endógeno», ou seja, à sua própria custa.
Assim se explica que a administração de Clinton tenha recusado
desbloquear os fundos de emergência reclamados pela Coreia do
Sul e que o Congresso tenha tentado impor sanções comerciais
aos países da Ásia e ao Japão para os obrigar a reduzir os
seus excedentes, grande parte dos quais são absorvidos pelos
Estados Unidos, hoje o maior devedor do planeta.
A intervenção do FMI é também vista como uma forma dos
Estados Unidos promoverem na Ásia uma economia liberalizada ao
máximo, aberta ao exterior, com um Estado reduzido à sua
expressão mínima. O chamado modelo asiático, caracterizado
até aqui por uma articulação entre o Estado e o mercado que
funcionou como factor de desenvolvimento, tem provavelmente os
dias contados.
Cenários de guerra
Num universo financeiro
globalizado e sem regras, uma crise numa longínqua região como
é o sudeste asiático pode ter consequências graves mesmo para
as economias industrializadas. Basta pensar que a mobilidade dos
capitais especulativos entre um extremo e outro do planeta é
instantânea e que a única «regra» é tentar obter o melhor
negócio possível.
Com a queda das bolsa asiáticas, muitos especuladores poderão
ver ali excelentes oportunidades para adquirir a preços de saldo
empresas em dificuldades. Entretanto, a Europa, interessada em
garantir uma forte taxa de câmbio ao futuro euro, precisa de
atrair o máximo de capitais oferecendo-lhes rendimentos
atractivos.
Porém, a forte desvalorização das moedas asiáticas vai
reforçar a competitividade das exportações desta região,
desequilibrando ainda mais a já muito deficitária balança
comercial dos Estados Unidos, factor que a prazo irá
reflectir-se sobre o valor do dólar norte-americano. Ora, um
dólar fraco arrastará consigo a alta das taxas de juro
norte-americanas, o que a acontecer representaria uma inevitável
declaração de guerra ao euro.
Sinais de abrandamento
Cautelosamente, os
especialistas do FMI admitem que o crescimento mundial em 1998
poderá sofrer uma ligeira baixa, passando de 4,3 para 3,5 por
cento. Contudo, neste momento ninguém sabe ao certo quais serão
os reais efeitos da crise asiática nas economias e as
instâncias internacionais não querem agitar ainda mais os
mercados com previsões pessimistas, ainda que estas sejam
plausíveis.
Os países da UE mostram-se confiantes de que as consequências
serão marginais, tendo em vista que as suas exportações para a
Ásia não ultrapassam nove por cento do total. Contudo, muitos
bancos europeus poderão sair prejudicados já que são grandes
credores de países asiáticos, estimando-se que ali tenham
investido cerca de 360 mil milhões de dólares.
Entretanto, os gigantes asiáticos como a Hyundai ou Samsung já
anunciaram o cancelamento de grandes investimentos em países
como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos. Esta semana, a Hyundai
suspendeu a construção da nova fábrica de automóveis na
Escócia, que representava um investimento de mil milhões de
dólares. Ao mesmo tempo, a Samsung anulou investimentos de 500
milhões de dólares no Texas e adiou outro de 450 milhões na
Grã-Bretanha.
Outros grandes projectos como a construção do TGV na Coreia, ou
a venda de submarinos e fragatas francesas à Tailândia correm
igualmente o risco de não se efectuarem.
Também os países produtores de matérias-primas serão
afectados. A Indonésia reduziu em 50 por cento as importações
de alumínio, 20 por cento de cobre e diminuiu as necessidades em
níquel. Por seu turno, a Coreia do Sul já renegociou em baixa
os contratos de fornecimento de petróleo com a Arábia Saudita.
Tempestades sociais Os pacotes de
austeridade impostos pelo FMI, e cujos efeitos os
portugueses ainda num passado recente sentiram na pele,
estão já a provocar forte contestação popular que
ameaça transformar-se numa das maiores crises sociais
dos últimos anos no sudeste asiático. |
O gigante chinês
Até ao momento, a China não
parece atingida pelo terramoto financeiro que tem derrubado, uma
após outra, as economias asiáticas de crescimento rápido.
Alguns analistas explicam que tal se deve ao facto da China se
encontrar bem protegida dos especuladores pelas importantes
reservas em divisas, avaliadas em cerca de 125 mil milhões de
dólares, bem como pelo seu fraco endividamento público interno
(cerca de 5 por cento).
Por outro lado, a convertibilidade da moeda chinesa, o yuan, é
fortemente limitada, o que a coloca ao abrigo dos especuladores,
enquanto o seu mercado de capitais não está demasiado exposto
ao mundo exterior e serve sobretudo para financiar essencialmente
o seu desenvolvimento. Não obstante, os investimentos
estrangeiros afluem maciçamente e sem o carácter especulativo a
curto prazo.
A solidez da economia chinesa é ainda constatável pelo forte
crescimento económico, superior a 9 por cento ao ano, pela
ausência de tensões inflacionistas (taxa actual de inflação
ronda os dois por cento) e por uma balança de transacções
correntes que apresenta excedentes na ordem dos 66 mil milhões
de dólares.
Já antes da actual crise financeira, os investimentos directos
estrangeiros, responsáveis por grande parte das exportações
dos países emergentes asiáticos, tinham sido reorientados para
a China.
Segundo o economista Stephen Cohen, num artigo publicado na mesma
edição deste mês do Monde Diplomatique, «em 1991, a
Tailândia recebia 10 por cento dos investimentos destinados à
Ásia, a China 20 por cento; em 1994, a Tailândia descia para
1,3 por cento e a China atingia os 67 por cento. A Malásia viu a
sua parte descer de 20 por cento para oito por cento». O
investimento externo na China continuou a subir em 1997, segundo
noticiou na terça-feira o jornal «China Daily», aumentando
23,72 por cento relativamente ao ano anterior, num total que
ronda os 52 mil milhões de dólares.
Apesar desta conjuntura favorável, a crise acabará
inevitavelmente por ter alguns efeitos na economia chinesa,
nomeadamente nas suas exportações, cuja competitividade por ser
posta em causa pela desvalorização das moedas asiáticas.
Refira-se ainda que a China necessita de uma taxa de crescimento
superior a 8 por cento para criar 30 milhões de empregos por
ano, para uma população de mil e duzentos milhões de pessoas.