O papel
e o lugar
dos comunistas e do PCP
Por Sérgio Ribeiro
Depois da minha anterior colaboração nesta «tribuna» (Atenção, Camaradas, 24 de Dezembro de 1997), ocorreram factos e/ou vivências que vieram confirmar o que me tinha levado a tratar aquele tema e a fazer aquele alerta. Por isso os retomo, com a intenção de os desenvolver no sentido que procuro traduzir no título que escolhi. Os novos factos e/ou vivências terão reforçado, a meu juízo, a pertinência da reflexão. Aliás, sou levado a acrescentar que considero que esta reflexão sobre o papel e o lugar dos comunistas e do PCP - deveria ser-nos intrínseca, e que os estímulos externos apenas deveriam... estimular uma reflexão interna permanente.
Como algum eventual leitor
ainda eventualmente se lembrará, na minha anterior colaboração
referia-me à revista Televif e à significativa
insistência com que ela contribuía para o que interpreto como
campanha anticomunista. Essa campanha teria a sua razão de ser
por a vida ter mostrado, muito mais rapidamente do que se
esperaria, que aquilo que se decretara morto e enterrado
(man)tinha e reforçava, com surpresa e incómodo a exigir
reacção, um papel e um lugar na interpretação do mundo e na
luta para a sua transfonnação.
Na capa de um dos números da revista, lá vinha «Estaline
cúmplice de Hitler», com tratamento «à
maneira» no interior. Mas não só. Neste curto intervalo, o
recém-publicado «Livro negro do comunismo», a que também me
referia no anterior escrito, teve largo tratamento no Le
Monde Diplomatique de Dezembro (obrigado, amigo Correia
da Fonseca, pela chamada de atenção!), logo seguido por
reacções diversas no número seguinte da prestigiada
publicação. Também na comunicação pela rádio tropecei no
tema: o Musique Trois, canal francófono de música
clássica, que costumo ouvir no trânsito complicado de Bruxelas,
estragou-me uma manhã com uma longa entrevista odiosa porque o
entrevistado destilava ódio a coberto de uma ligeiríssima
camada de aparente erudição histórica muito bem manipulada
para ser bem manipuladora. No canal «culto»...
Em Portugal, e a partir duma leitura distorcida dos resultados das autárquicas, nestas escassas semanas que nos passaram de 1997 a 1998, os comunistas e o PCP, a sua importância no panorama político português e a perspectiva da sua evolução também mereceram inusitada atenção. Para além de comentários com que nem há tempo (e paciência) para perder, um artigo de Manuel Alegre no Expresso punha questões e perspectivava evoluções por forma e em termos que mereciam resposta. Deu-lha Aurélio Santos de maneira que estimo exemplar, num «actual» da página 3 do «Avante!» de 8 de Janeiro, que termina com uma advertência séria: «o PCP não tem vocação para muleta do PS, nem de ser, como o sr. Grilo do Pinóquio, uma simples "voz da consciência" para fazer crescer o nariz do PS». Curioso (e triste!) é que, dois dias após a saída do «Avante!», o director do Expresso, em editorial, plagiava redutoramente Manuel Alegre e, ainda cheio de originalidade!, remetia o PCP para o inevitável papel de vir a ser o grilo pinoquiano do PS...
Entre parênteses, e para que não haja confusões, não tenho reservas quanto à avaliação de que os resultados das autárquicas foram insatisfatórios, globalmente negativos para a CDU. Mas a objectividade dessa avaliação, e o seu reconhecimento, sendo um facto político relevante, não autoriza leituras distorcidas que, com tanta pressa e oportunismo, quase dizem ter passado a insignificante o espaço do PCP e ser irreversível o seu declínio. E quanto se trata de autárquicas, é inaceitável que se pretenda fazer esquecer que esse espaço se mede por 41 municípios (e mais Lisboa) e por muitas centenas de mandatos. Sabendo-se que fazer passar os desejos por realidade é arma política, percebe-se o porquê da inaceitável manipulação.
Outros factos e/ou vivências
Atento para não cair no
engano que noutros denuncio como arma inaceitável, no curto
intervalo entre as duas colaborações na «tribuna» houve
factos e/ou vivências de sinal contrário que merecerão
referência por reforçarem a tese de que a campanha que se
estará a fazer resulta precisamente da necessidade desses outros
passarem ao ataque uma vez que a realidade está a contrariar -
que para eles! - seria desejável.
O nosso grupo no Parlamento Europeu, o Grupo Confederal da
Esquerda Unida Europeia/Esquerda Verde Nórdica, alargou com a
entrada de um novo membro, o prestigiado deputado Ken Coates,
saído do Partido Trabalhista depois de conflito prolongado com a
direcção de Tony Blair, pelo afastamento deste das origens
operárias, sindicais, de esquerda, do partido, como, aliás, já
o tínhamos lido, em português, num artigo que Coates publicou
na Vértice há mais de dois anos. Não me vou alongar
sobre a personalidade do novo membro, mas deixo o significado
adicional de, com a sua entrada, o grupo ter passado a ter 8
países representados quando, em 1994, só estavam organizadas em
grupo três representações nacionais da esquerda agora no
CEUE/EVN, os PC de Portugal, Grécia e França.
Por outro lado, este período, que inclui Natal e Ano Novo, foi - e está a ser - marcado pela luta social dos desempregados em França, com grande impacte e claramente de classe e em que o PCF, apesar da participação de ministros comunistas no governo, estará a mostrar ter aproveitado a lição do começo dos anos 80 e tem sabido, como as forças sindicais de classe, estar presente e interveniente nessa luta.
Por último, nestes dias também se viu a novidade de referências ao PC belga na comunicação social, o que há muitos anos não acontecia. Surpresa? Decerto o será para quem, no contexto mediático, aceitara por bom o passamento do PCB, expressão local das certidões de óbito que abundaram, e se habituara à presença simpática e quase só resistência cultural de grupos, associações e partidos esquerdistas. Mas não foi surpresa para quem participou nas comemorações do 75º aniversário, em Charleroi, e tem tido sinais de esforços e iniciativas para recuperar um espaço que tem estado vazio e que é preciso preencher.
Falta de espaço?
O caso é que se tem
procurado colocar a questão desta forma: teria deixado de haver
espaço para os comunistas, e seu partido, e assim aconteceria
porque a esquerda, a existir, se esgotaria numa miscelânea, por
vezes promíscua, de social-democracia com esquerdismo. Como
também se vê defender, com sobranceria e «modernidade», que
deixou de ter sentido falar em direita e esquerda, em ideologias.
Haveria, sim, que encontrar soluções para os problemas, não
tendo estes dimensão social, muito menos origem em relações
sociais de classe.
Como tanto temos insistido, mas nunca será de mais, o ataque às
ideologias é ideológico e visa instituir a ideologia única, o
pragmatismo como ideologia. A questão do espaço político, do
espaço de intervenção política, está ligada com este tema,
que é, ao fim e ao resto, o da luta de classes no plano das
ideias. O manancial conceptual do marxismo é um verdadeiro
arsenal para esta luta. Há, na verdade, um espaço de
interpretação e intervenção insubstituível, em que se
confrontam e afinam conceitos como os de classes sociais, de
relações sociais de produção, de necessidades, força de
trabalho e uso da natureza para a sua satisfação, de valor,
mais-valia e apropriação, de pauperização. Não definidos de
uma vez por todas, não hierarquizados e articulados entre si
hoje como ontem. Com uma base material e materialista, e sempre
aferidos pelo critério da prática social. Exigindo estudo
permanente, em permanente ligação com as realidades e com as
massas.
Teria passado dos factos e
vivências para uma reflexão teórica deles afastada? De modo
nenhum o quero. É a realidade, e o critério da prática social,
que comprova (ou reprova) o fundado das teorias e das suas
aplicações. E o que me parece é que não faltam factos e
vivências que, pelo que são de ataque e campanha e pela
positiva, vêm comprovar que há um espaço de reflexão e de
intervenção que é dos comunistas, e dos seus partidos, e que
esse espaço é incompreenssível e insubstituível. E que de
nós depende alargá-lo ou deixar que se vá reduzindo até que a
própria realidade, quem a faz no dia-a-dia, exija que seja
recuperado, obrigando a retomar, na teoria e na prática, os
conceitos que são indispensáveis para a interpretação e para
escorar a intervenção.
Estamos perante tarefas que ilustram vitalmente que a iniciativa
tem de prevalecer sobre a resposta. Por mais oportuna que esta
seja, estará sempre atrasada em relação àquela. A nossa
experiência pede a iniciativa de afirmar e alargar o nosso lugar
e papel no espaço que é o nosso, e para que, como o mostram
experiências de outros, não se tenha de vir a lutar para o
(re)ocupar por ter ficado vazio ou por ter estado a esvaziar-se
na ausência de intervenção adequada ou mesmo de resposta
oportuna.