O quadrado argelino

Por Carlos Nabais


Não deixa de ser estranho o súbito interesse que a chamada comunidade internacional passou a demonstrar recentemente pelos graves acontecimentos na Argélia, os quais, também subitamente, passaram a ter grande destaque nos telejornais e nas primeiras páginas da imprensa.

Na passada semana, (15 Jan.) a estação francesa TV5 transmitiu um debate que juntou um apreciável número de personalidades argelinas e francesas, que se dispuseram a discutir a situação naquele país demonstrando, como é natural, pontos de vistas diferentes e mesmo contraditórios sobre a realidade em questão.
No meio de testemunhos impressionantes e de opiniões divididas entre a necessidade ou não da «ajuda» da comunidade internacional, um dos intervenientes recordou, com pertinência, que os actos terroristas não são novidade nenhuma na Argélia.
É um facto. Muito antes das eleições de 1991, já o país era fustigado por actos terroristas levados a cabo por fundamentalistas islâmicos. Facto é também que depois da anulação do sufrágio e ilegalização da Frente Islâmica de Salvação – FIS – a violência alastrou e se agravou até aos nossos dias.
Na altura a comunidade internacional não hesitou em apoiar a atitude do governo argelino de não reconhecer o resultado eleitoral. Mandando a «democracia» às urtigas, o poder do FIS foi considerado indesejável e perigoso para os interesses do Ocidente, entretanto convertido às virtudes do gás natural.
De imediato, porém, as embaixadas e cidadãos estrangeiros começaram a ser alvos prioritários da FIS e a grande parte das representações diplomáticas abandonaram simplesmente o país, ou reduziram ao mínimo a sua presença. A prova é que de 500 mil vistos anuais, a França passou a emitir 50 mil vistos a cidadãos argelinos, como referiu no debate o ex-ministro francês da Cultura, Jack Lang, agora presidente da Comissão Parlamentar dos Negócios Estrangeiros, dando conta da necessidade de criar novos consulados e reatar os contactos entre os dois países.
Assim, durante quase uma década, o terrorismo fundamentalista vitimou dezenas de milhares de pessoas, sendo particularmente violento e tenaz contra jornalistas e intelectuais. Que se saiba, nunca nenhum Governo ocidental ofereceu os seus préstimos para combater o flagelo. Nunca ninguém falou em comissões de inquérito internacionais; nunca ninguém questionou quem realmente matava, parecendo para todos ponto assente que os responsáveis estavam há muito identificados e davam pelo nome de FIS.
Inesperadamente, porém, hoje levantam-se as mais diversas dúvidas: Correm rumores acusatórios de que o Governo argelino está implicado nos atentados; considera-se escandaloso que o exército não consiga garantir a segurança dos cidadãos (num território que é quatro vezes maior que a França e que tem um reduzido quadro de efectivos) e insiste-se na necessidade imperiosa de uma intervenção internacional para pôr cobro ao terrorismo e dar apoio humanitário às vítimas dos massacres.
Ao mesmo tempo que «despertam» para os horrores do terrorismo, os Governos ocidentais parecem ignorar que é nos seus países que os altos dirigentes da FIS e respectivos séquitos residem e se organizam. É na Inglaterra, Alemanha, França, Bélgica, Estados Unidos, entre outros, que lhes é permitido desenvolver «legalmente» as suas actividades e propagar os seus pontos de vista em extensas entrevistas a prestigiados jornais de grande difusão.
Um desses dirigentes fundamentalistas, sediado em Inglaterra, participou telefonicamente no debate transmitido pela TV5. Fez questão de «humanamente» condenar o terrorismo, afirmando que a sua Frente nada tem a ver com ele. (Não disse porém que o AIS – Associação Islâmica de Salvação – o braço armado oficial da FIS apenas suspendeu as suas acções no passado mês de Outubro). E acrescentou que o GIA – Grupo Armado Islâmico – se encontra dividido em vários grupos, os quais estão, supostamente, fora de qualquer controlo.
Contudo, deixou um aviso: Segundo a FIS a única solução para Argélia é uma solução política. Ou seja, pretendendo não ter qualquer influência nos acontecimentos, a FIS reivindica a abertura de negociações bilaterais, ostentando como moeda de troca a pacificação do país. Para quem diz nada controlar, estas afirmações são no mínimo suspeitas. Das duas uma: ou a FIS está a fazer bluf ou então continua como sempre por detrás dos ataques terroristas que manipula friamente para alcançar o poder.
Quanto aos verdadeiros motivos que levam a «comunidade internacional» a interessar-se pela Argélia e receitar-lhe como cura uma «intervenção humanitária», não são menos suspeitos, tanto mais que as ingerências estrangeiras resultam por norma no estabelecimento de novas correlações de forças políticas no terreno. Acontece que na Argélia a alternativa ao actual Governo é o poder islâmico medieval, representado pela FIS. É certamente nesse intuito, que os seus dirigentes surgem agora a condenar o sangue derramado, pretendendo branquear um passado de violência declarada e guerra fratricida.

Será esta versão soft da FIS a nova aposta do Ocidente?...


«Avante!» Nº 1260 - 22.Janeiro.98