A TALHE DE FOICE

Abortos


A questão do aborto está a agitar de novo os deputados da Nação e, por arrastamento, a imprensa nacional. Os louros cabem uma vez mais à Juventude Socialista que consegue bizar, em curto espaço de tempo, a proeza de concentrar as atenções em torno de um projecto apenas anunciado e que ainda ninguém conhece. Espera-se que desta vez a iniciativa da JS venha a conhecer letra de forma, tanto mais que o PP, pela mão de Maria José Nogueira Pinto, conseguiu encontrar tempo nas suas agitadas águas para dar à luz um projecto cujo objectivo é a definição de «uma personalidade jurídica para o embrião a partir do momento da concepção».
A preocupação de Mizé pelos embriões é tocante. Segundo a própria afirma, a proposta é «inovadora», já que coloca a questão «em termos de direitos civis» e abrange, segundo garante, «questões para além do aborto, envolvendo a clonagem ou a manipulação genética».
É caso para dizer que, mais do que inovadora, a proposta é radical. Imagine-se, por exemplo, que um dos tais embriões com direitos civis se malograva porque a potencial mãe, ignorante do facto, tinha decidido ir saracotear o esqueleto para a discoteca. Seria isto crime por negligência?
É claro que sempre se pode encarar a hipótese de os casais portugueses, sempre que... enfim, coisa e tal..., passarem a ir a correr para as farmácias de serviço para fazer o teste de gravidez, mas é duvidoso que as estuturas tenham capacidade de resposta. Até porque, para a medida ser realmente eficaz, havia que logo ali, na presença do farmaceutico, ser lavrado um registo da ocorrência, com determinação precisa da hora e local dos factos, devidamente assinado pelos culpados, perdão, pelos promissores pais, duas testemunhas devidamente identificadas, e com o selo branco do estabelecimento.
As potencialidades abertas pela onda radical da nossa Mizé são imensas. Suponha-se agora que num desses laboratórios onde se faz inseminação artificial alguém mais desajeitado tropeça, lança a mão ao primeiro frasco que encontra e... truz, entorna o embrião proveta. Será um crime ou um acidente de trabalho?
Há que ponderar todas as possibilidades. Enquanto a sucessão de Monteiro está em fase embrionária, talvez Mizé devesse começar a preparar um gabinete de estudos para analisar todas as implicações possíveis da proposta radical, que isto de embriões já se sabe como é, dá-se-lhes personalidade e querem logo advogados, cartão multibanco, telemóveis, etc., etc..
Por estas e por outras é que as escolas portuguesas estão como estão, e ainda o Grilo - não o falante, mas o mandante - anda com paninhos quentes quanto à disciplina. A Mizé é que não vai nisso, como bem disse na Assembleia da República - aluno mal comportado vai para a rua e se não se emenda, fora da escola com ele -, e repetiu na SIC - a escola não é nenhum recreio e há crianças que não são educáveis - para quem a quis ouvir.
Sim, porque é preciso não confundir as ideias. Uma coisa são os embriões mais a sua personalidade jurídica, sossegadinhos na barriga das imprecavidas mães. Outra coisa são as crianças, com personalidade própria e exigências várias, a dar dores de cabeça à sociedade. Protejam-se os primeiros e abandonem-se as segundas à sua sorte - eis o conselho lapidar da direita portuguesa.

E depois ainda há quem estranhe que tantos sejam a favor do aborto! — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1260 - 22.Janeiro.98