PS capitula no referendo sobre o aborto

500 personalidades
reclamam votação da Lei


Tal como era previsível, o PSD não requereu faz hoje oito dias a votação do seu projecto de resolução relativo ao referendo sobre o aborto. Não obstante a ausência de objectivo parlamentar, a iniciativa laranja suscitou acalorada discussão, acabando o debate por se tornar particularmente incómodo para a bancada socialista.

Sob o fogo cerrado de todos os quadrantes da oposição, o PS viu-se em palpos de aranha para conseguir explicar o que se afigura inexplicável, designadamente as contradições e o enviezamento de posições em todo este processo, que estiveram na base da sua capitulação às exigências do PSD.
Colocado no centro do debate foi, por exemplo, o antagonismo de posições entre o secretário-geral do PS e primeiro-ministro, António Guterres, que se assume como contrário à despenalização do aborto, e as convicções dominantes no Grupo Parlamentar dirigido por Francisco Assis, maioritariamente favoráveis à descriminalização da interrupção voluntária da gravidez.

Do mesmo modo, elucidativo das mudanças súbitas e das incoerências que pautaram o seu comportamento, realçado foi com grande ênfase o facto de o PS ter começado por recusar o referendo, para depois aceitar a consulta popular.

Da bancada comunista, pela voz de João Amaral, partiram, aliás, as palavras que melhor sintetizam o imbróglio e o estado a que as coisas chegaram. Dirigindo-se directamente à bancada socialista, numa alusão ao seu percurso nesta matéria, lembrou-lhe que o PSD, depois de a ter conduzido a dar o dito por não dito, "sente o direito de vos humilhar, explicando publicamente que é ele quem conduz o jogo (...) que é ele quem toca a música que o PS dança".
Para o parlamentar do PCP não existem motivos sérios, por conseguinte, para os deputados socialistas se agastarem "com quem põe em evidência a figura que estão a fazer". "Se têm de o fazer com alguém", observou, "é consigo mesmo, com a vossa consciência e com a questão do respeito devido às mulheres portuguesas e à defesa dos seus interesses e da sua dignidade".
Tanto mais que, foi ainda João Amaral a ir ao fundo da questão, o PS escolheu conscientemente a "via da exclusiva aprovação parlamentar, sem recurso ao referendo, para fazer a lei de despenalização do aborto", sustentando esta opção na certeza de que se trata de "um grave problema de saúde pública", que "tinha de ser assumido e resolvido sem hipocrisia" e em relação ao qual "não se podia esperar mais".

Não menos duras foram as críticas que João Amaral dirigiu ao PSD. Visado, sobretudo, foi o seu projecto de resolução sobre o referendo em matéria de aborto, proposta que não hesitou em classificar de "indecente". Desde logo, explicou, "porque se ajustava ao milímetro a um discurso que no PS quisesse dar o dito por não dito e ajustava-se tão perfeitamente que tem de se perguntar se não estava já previamente escrita e acertada".
Mas "a proposta do PSD é também indecente", segundo João Amaral, "por pôr a Assembleia da República de rastos". "Escolher a via parlamentar, andar como andou o PS a dizer que era a seguir às autárquicas que o projecto seria agendado e votado, andar publicamente a pressionar o PCP para não agendar o seu projecto antes das autárquicas, marcar a data da votação com recurso a um agendamento potestativo, fazer campanha contra o referendo em nome da legitimidade do Parlamento e depois disso capitular e deixar escapar-se entre os dedos o que tão laboriosamente tinha sido conseguido - sustentou -, tudo isso é tratar a Assembleia como um joguete, nas mãos de interesses partidários e de arranjos de corredor".
A proposta do PSD é ainda uma proposta indecente, na opinião de João Amaral, na medida em que, sublinhou indignado, "são as mulheres, a sua cidadania, a sua dignidade, a sua saúde e vida, que foram usadas como moeda de troca".

Deixada pelo deputado comunista foi ainda uma interrogação sobre o que fará o PS se o "não" ganhar no referendo ao aborto: "Se a campanha das homilias for levada ao extremo, se os vídeos obscenos levarem ao vómito e à guerra total, se as chantagens e os medos políticos que no PS são mais que visíveis levaram à derrota da lei, que fazem os deputados do PS ? Lavam as mãos? Dizem às mulheres condenadas ao aborto clandestino que não têm responsabilidade nisso?"

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500 personalidades reclamam votação final da Lei

Subscrita por 500 personalidades, entre jornalistas, médicos, escritores, professores universitários, actores, cantores, artistas plásticos e dirigentes sindicais, foi entregue uma declaração no passado dia 19 ao presidente daquele órgão de soberania e a todos os grupos parlamentares reclamando da Assembleia da República a votação final da lei de despenalização do aborto, aprovada na generalidade em 4 de Fevereiro.

No texto, os signatários manifestam a sua preocupação com o facto de, "a pretexto de uma futura mas manifestamente incerta realização de um referendo, se indiciar a paralisação e suspensão do processo legislativo" que despenaliza a interrupção voluntária da gravidez em determinados prazos e circunstâncias.
Lembrando a enorme importância de "assegurar uma resposta positiva ao drama vivido pelas mulheres portuguesas com o flagelo do aborto clandestino", do mesmo modo que, do seu ponto de vista, importa observar a "coerência que deve a si própria a maioria dos deputados que aprovou a lei", os subscritores da declaração reclamam o respeito pelo "calendário anteriormente previsto de discussão na especialidade, seguido da urgente aprovação final da lei".

A declaração foi entregue no Parlamento por uma delegação constituída por Isabel Cruz, vice-presidente da Associação «A Mulher e o Desporto», Madalena Santos, jurista, Maria Louro, técnica superior da Função Pública, Manuela Tavares, economista, e Conceição Morais, empregada.


«Avante!» Nº 1265 - 26.Fevereiro.98