Imigrantes em Portugal:
todos diferentes, todos iguais?

Por Henrique Sousa
Membro do Secretariado do CC


As leis que Governo e PS, com a cumplicidade do PSD, pretendem fazer aprovar sobre o trabalho de estrangeiros e sobre a entrada, permanência, saída e expulsão de estrangeiros do País não respeitam a nossa condição de povo forjado num cadinho multicultural e multiétnico.

São contraditórias com o discurso oficial do "diálogo" com as comunidades imigrantes e étnicas existentes. Mandam às urtigas a especificidade da nossa relação com os países de língua portuguesa, de que são originários 2/3 dos 175 000 estrangeiros residentes em Portugal. Desmentem a coerência que devia ser exigida quanto ao respeito cá dentro pelos direitos dos imigrantes em correspondência com o que justamente exigimos lá fora quanto ao tratamento dos emigrantes portugueses. São um sinal mais de que a preocupação governamental de ser um "bom aluno europeu" não se refere apenas às privatizações, à moeda única ou à limitação dos direitos dos trabalhadores, mas se exprime também por uma política de estrito e servil cumprimento dos Acordos de Schengen, de participação na construção egoísta de uma "Europa fortaleza" fechada a povos de quem só interessa extrair mais-valias para engorda do capital, mesmo que à custa da sua condenação ao subdesenvolvimento e à pobreza.

O facto dessas leis se encontrarem ainda em gestação(1) mais justifica que redobre e se amplie o movimento de denúncia e de protesto contra o significado da sua aprovação.

Porque quem cala consente, o PCP tem sido desde o início destes processos legislativos a mais activa voz no esclarecimento e na denúncia do significado destas leis, que assentam numa visão repressiva e persecutória do estrangeiro e do imigrante e não no conceito de uma sociedade aberta e plural, capaz de incorporar no seu seio, como factor de enriquecimento e de progresso, o diálogo entre diferentes culturas, comunidades e etnias. Fizemo-lo, inclusivé, em plena campanha eleitoral das autarquias locais, quando outros, por cálculo político, queriam silenciar a gravidade do que se forjava.

Que querem o Governo e o PS com a aprovação destas duas leis, inseparáveis nos seus objectivos, a que se soma a anunciada intenção de uma lei orgânica para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que visaria acentuar o seu carácter de polícia da imigração? Preparar os instrumentos legais e os mecanismos repressivos que lhes permitam, não apenas o controlo normal dos fluxos de imigração, mas fechar quase completamente as portas à entrada de cidadãos estrangeiros de fora da União Europeia e preparar a saída ou expulsão, logo que não sejam considerados necessários, de muitos milhares de imigrantes entrados para trabalhar nas grandes obras em curso e em vias de conclusão. Uma lógica política de subordinação aos Acordos de Schengen e uma lógica economicista que vê no imigrante mera força de trabalho temporária a ser usada pelas empresas nas tarefas mais penosas, perigosas e menos qualificadas e não o cidadão de corpo inteiro, com direitos, aspirações e família que é de facto.

A proposta de lei do Governo PS sobre o trabalho de estrangeiros, votada na generalidade na Assembleia da Republica com o apoio do PSD e do CDS/PP e com a clara oposição do PCP e do PEV (2), embora defendendo - tal como os projectos derrotados do PCP e do PEV - o fim da quota máxima de 10% de trabalhadores estrangeiros em cada empresa (a qual, além de discriminatória, apenas empurra ainda mais para o recurso ao trabalho clandestino), mantém e desenvolve os mecanismos de discriminação e fiscalização do trabalho de estrangeiros previstos no Decreto-Lei 97/77 ainda em vigor. Confirmando a conhecida máxima de que "de boas intenções está o inferno cheio", logo desmente nas suas propostas o que afirma no seu preâmbulo - "uma melhor adequação ao princípio constitucional de direitos e deveres dos estrangeiros relativamente a cidadãos portugueses". Apesar dos recuos do PS na discussão na especialidade desta lei (3), fruto da denúncia feita pelo PCP, pelo movimento sindical e por organizações ligadas à imigração, é facto que mantém dificuldades de acesso ao trabalho legal dos imigrantes; impõe uma série de medidas burocráticas adicionais à sua contratação; estabelece diferentes níveis de tratamento dos cidadãos estrangeiros por origem, sem entretanto assegurar aos originários da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) uma natural "discriminação positiva"; exige o registo prévio de todos os contratos de trabalho de estrangeiros no IDICT; impõe a forma escrita ao contrato de trabalho, obrigação que não existe para um trabalhador de nacionalidade portuguesa.

Na verdade, a verdadeira intenção desta proposta de lei está em pretender "uma mais rigorosa fiscalização quer da prestação de trabalho quer, indirectamente, da autorização de entrada, permanência ou residência de cidadãos estrangeiros". Ou seja, instrumentalizar as relações de trabalho e as empresas para a fiscalização do movimento de estrangeiros, fazer intervir o SEF (um serviço de polícia da imigração) nas empresas, confundindo perversamente a regulação das relações de trabalho com o combate à imigração ilegal e tornando os trabalhadores não nacionais em alvos permanentes de suspeita e vigilância policial.

A autorização legislativa votada favoravelmente por PS e PSD (com a evidente oposição do PCP e do PEV) na Assembleia da República para o Governo alterar a actual regulamentação sobre a entrada, permanência, saída e expulsão de estrangeiros, pelo que é público quanto ao respectivo anteprojecto de decreto-lei, e que é de extraordinária gravidade, inscreve-se na mesma estratégia de desconfiança, que trata os imigrantes como potenciais delinquentes.

Tal é a gravidade das intenções do Governo nesta matéria, metendo na gaveta todas as declarações e compromissos do PS nesta matéria quando na oposição e piorando tudo o que então ao lado do PCP combateram na política do PSD, que ao protesto do PCP se juntou, não só o protesto e a oposição de associações de imigrantes, do movimento anti-racista e da CGTP, mas também a voz da Obra Católica das Migrações e de responsáveis da hierarquia da Igreja(4). E só é lamentável que o PS tenha chegado ao ponto de, no debate parlamentar, ter usado como porta-voz uma deputada de origem cabo-verdeana, que assim se sujeitou ao vergonhoso papel de ofender os interesses da própria comunidade a que está ligada.

O projecto do Governo PS visa piorar a legislação de estrangeiros aprovada em 1993 por proposta de Cavaco Siva e Dias Loureiro.

Porque quer impor em Portugal mecanismos de delação obrigatória ao propor que quem ceder alojamento a cidadão estrangeiro tenha de fazer declaração ao SEF, à PSP ou à GNR no prazo de 3 dias, sob pena de graves sanções, o que acentuará também a discriminação no acesso à habitação. Pretende tornar em crime de auxílio à imigração ilegal o simples facto de uma pessoa acolher em sua casa um estrangeiro que não tenha a sua situação regularizada, sujeitando-se o hospedeiro a pena de prisão até 3 anos e ainda à pena acessória de expulsão, se não for português. Ou seja, o Governo PS pretende introduzir na legislação portuguesa medidas que, em França, foram tentadas pelo defunto Governo de direita (Leis Pasqua/Debré), obrigado então a recuar face à intensidade do movimento de protesto na sociedade francesa, incluindo de associações de emigrantes portugueses!

Porque quer fazer a cidadãos de países de língua portuguesa e outros o mesmo que as autoridades dos Estados Unidos fazem a cidadãos portugueses que lá cresceram, lá têm a família, lá residem há dezenas de anos e que são expulsos para Portugal após cumprirem penas de prisão sem cá terem quaisquer raízes ou laços familiares. Ou seja, manter o regime desumano de pena acessória de expulsão mesmo a estrangeiros residentes em Portugal há dezenas de anos, com a família cá, se tiverem cumprido pena de prisão e ainda que não tenham quaisquer laços com o país de origem.

Porque pretende que as expulsões de cidadãos estrangeiros do território nacional sejam executadas, mesmo que delas tenha sido interposto recurso. Ou seja, um cabo-verdeano ou guineense que aqui vivam com a sua família há muitos anos, podem ser expulsos do País antes que um tribunal se pronuncie definitivamente sobre essa expulsão.

Porque trata os imigrantes como se fossem delinquentes e sujeita todos os passos da sua vida, no trabalho, no estudo, na habitação, na identificação civil, à vigilância do SEF, concebida como uma super-polícia de estrangeiros com poderes quase absolutos e reforçados, a quem não são sequer definidos prazos para o cumprimento das suas obrigações em matéria de emissão de vistos, pareceres, documentos, assim aumentando a discricionaridade administrativa a que são sujeitos os estrangeiros. Aliás, sendo o anteprojecto de decreto lei divulgado tecnicamente defeituoso e burocratizante, é também legítima a suspeita de que a falta de clareza, quer quanto aos conceitos utilizados (como é o caso do conceito de estrangeiro) quer quanto á relação entre emissão de vistos de trabalho, de estudo, de residência e requerimento de autorizações de residência, pretende aumentar pela ambiguidade a margem de arbítrio administrativo a que podem ser sujeitos os imigrantes.

Os projectos e os actos do Governo PS desmentem o apregoado diálogo e respeito pelos direitos dos imigrantes em Portugal. São a outra face da falta de capacidade evidenciada na defesa dos direitos dos emigrantes portugueses espalhados pelo Mundo. Revelam que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa continua no domínio das intenções e a marcar passo na caminhada dos direitos concretos dos cidadãos, na base da reciprocidade, sacrificada aos ditames de Schengen e da União Europeia.

É urgente e indispensável levantar a voz e o protesto contra os projectos discriminatórios e repressivos do Governo relativamente aos imigrantes em Portugal. Em nome dos direitos e valores básicos de uma sociedade democrática e multicultural. Para que , "no limiar do terceiro milénio, também se confirme e desenvolva como característica enriquecedora do nosso País e dos portugueses esta fusão de culturas e de povos que faz parte do processo de formação do Portugal moderno"(5). Não é tarde. Vale a pena

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1) no caso da lei sobre trabalho de estrangeiros, em apreciação parlamentar na especialidade; no caso da lei sobre entrada, permanência, saída e expulsão de estrangeiros, votada que foi a autorização legislativa, agora à espera da aprovação e publicação do respectivo Decreto-Lei, cujo anteprojecto é conhecido

2) que apresentaram projectos de lei sobre esta matéria orientados pelo objectivo de assegurar a igualdade de direitos nas relações de trabalho a todos os trabalhadores, sem distinção, reprovados pelos partidos de direita com a cúmplice abstenção do PS.

3) O PS abandonou a exigência de uma taxa de 2 000.00 pelo registo de cada contrato de trabalho e do envio anual ao SEF da relação dos trabalhadores estrangeiros ao serviço de cada empresa, que explicitava escandalosamente a intervenção desta polícia nas relações de trabalho.

4) "Admiro-me com o surgir de uma legislação com conteúdos controleiros e denunciantes precisamente no momento em que as ‘entidades braçais’ vão deixar de ser necessárias" (D.Januário Torgal Ferreira, Secretário da Conferência Episcopal em Expresso-20/12/97).

5) Da intervenção do Secretário-Geral do PCP, Carlos Carvalhas, no Encontro "A CDU e as Comunidades Imigrantes na Área Metropolitana de Lisboa" - 27/2/97.


«Avante!» Nº 1265 - 26.Fevereiro.98