O PCP e a Iniciativa Legislativa Popular

Por António Filipe


Por iniciativa desencadeada pelo PCP, a Assembleia da República debateu no passado dia 11 de Fevereiro vários projectos de lei destinados a consagrar o direito de iniciativa legislativa de grupos de cidadãos eleitores. Tratar-se-á de um importante direito de participação popular, desde que os mecanismos que se venham a estabelecer para o seu exercício não acabem por inviabilizar na prática a sua utilização.

A luta do PCP pela consagração do direito de iniciativa legislativa popular já vem de longe. Foi o PCP o único partido a avançar com a proposta na Revisão Constitucional de 1989, não tendo obtido então o acolhimento que veio a conseguir na Revisão de 1997. Consagrado o direito na Lei Fundamental, foi mais uma vez o PCP o primeiro partido a avançar com um projecto de lei que o torne efectivo.

A iniciativa legislativa popular traduz-se afinal na possibilidade de grupos de cidadãos apresentarem projectos de lei à Assembleia da República. É por isso um passo de grande significado na efectivação de um importante mecanismo de participação dos cidadãos na vida política, que consubstancia uma importante aproximação entre os cidadãos, a Assembleia da República e os Deputados que a compõem.

O direito de apresentar iniciativas legislativas, que até à data tem pertencido exclusivamente aos Deputados, aos Grupos Parlamentares, ao Governo e em certos casos às Assembleias Legislativas Regionais, passa também a pertencer directamente a grupos de cidadãos eleitores.

Porém, para que este direito se torne efectivo, não basta a sua consagração no texto constitucional. É preciso em primeiro lugar que ele seja regulado em lei e é preciso também que essa regulação legal não seja de modo a frustrá-lo na prática.


5 princípios essenciais

É por isso que o projecto de lei do PCP assume o objectivo central de facilitar o exercício deste direito, despindo-o de formalismos desnecessários, na base de alguns princípios que são essenciais para que o direito de iniciativa legislativa popular tenha, verdadeiramente, um sentido útil. Em jeito de síntese, pode dizer-se que o projecto de lei do PCP assenta em 5 princípios:

Primeiro: Que o número de assinaturas a exigir para a apresentação de uma iniciativa legislativa não seja tão elevado que impeça na prática, ou dificulte injustificadamente, a apresentação de iniciativas.

Segundo: Que as iniciativas não sejam recusadas com fundamentos burocráticos ou formais. Deve funcionar o princípio do aproveitamento útil das iniciativas, evitando a burocratização dos processos ou a inutilização de propostas com fundamento em deficiências técnicas que possam, com a ajuda da própria Assembleia, ser superadas.

Terceiro: Que a Assembleia da República se vincule à apreciação das iniciativas em prazos previamente fixados para todas as fases do processo legislativo. Se não forem fixados prazos para a tramitação regimental das iniciativas legislativas, corre-se o risco real de que alguma iniciativa legislativa popular fique encalhada nalguma comissão parlamentar ou vá sendo sistematicamente preterida na fixação da ordem do dia.

Quarto: Que os autores da iniciativa popular sejam atempadamente informados sobre o andamento do processo, para que o possam acompanhar e participar activamente na sua discussão pública.

Quinto: Que as matérias que possam ser objecto de iniciativa legislativa popular não sejam circunscritas a questões menores, mas que, no respeito por limitações constitucionais, seja dada aos cidadãos uma ampla margem de iniciativa em razão da matéria. Sendo evidente que a iniciativa legislativa popular, até pelo esforço organizativo que implica, não será utilizada em torno de minudências, são as grandes questões, que verdadeiramente preocupam grande número de cidadãos, as que previsivelmente serão objecto de iniciativa popular. Se o poder de iniciativa dos cidadãos for limitado a questões secundárias, será o núcleo essencial do direito a ser posto em causa.

Explicitados os princípios que norteiam a posição do PCP neste processo legislativo, tem interesse confrontá-los com o conteúdo dos projectos apresentados pelo PS e pelo PSD.


Algumas questões em aberto

Quanto ao número mínimo de cidadãos para apresentar uma iniciativa legislativa, o PCP propõe que sejam 5 000. Por razões que facilmente se entendem. Se 5 000 cidadãos eleitores podem constituir um partido político e concorrer a todos os actos eleitorais, não se compreenderia que o mesmo número de cidadãos não pudesse apresentar uma iniciativa legislativa a submeter à apreciação da Assembleia da República.

O PSD propõe 25 000 eleitores. O PS propõe 0,3% do número de inscritos no recenseamento em território nacional, o que de acordo com o recenseamento em vigor representa 26.779 assinaturas. Trata-se, em ambos os casos, de uma exigência manifestamente excessiva e desencorajadora do exercício do direito de iniciativa legislativa. Não se compreende que o número de assinaturas exigido para apresentar um projecto de lei à Assembleia da República tenha de ser cinco vezes superior ao número de assinaturas necessário para fundar um partido político.

Quanto às próprias iniciativas, o projecto de lei do PCP apenas exige que os proponentes definam concretamente o sentido das modificações que pretendem introduzir na ordem legislativa, não ficando a admissão da iniciativa dependente da perfeição técnica com que seja apresentada. Propõe mesmo que a Assembleia da República colabore com os proponentes, através dos seus serviços, com vista a adequar tecnicamente a iniciativa aos fins visados. Isto porque a iniciativa popular deve ser um direito do povo em geral e não necessariamente um direito dos juristas. Os cidadãos não são obrigados a saber articular uma iniciativa legislativa ou a conhecer os requisitos técnicos complexos da elaboração das leis. Daí que, ao contrário do que propõem o PSD e o PSD, não se afigura essencial que a iniciativa legislativa popular deva ter à partida a forma articulada ou cumprir os requisitos técnicos que são próprios das iniciativas parlamentares ou governamentais.

Outra questão relevante diz respeito às matérias que podem ser objecto de iniciativa legislativa popular. Existem à partida, limitações óbvias: O respeito pela Constituição e pelos princípios nela consignados. O respeito pela chamada "lei-travão", não podendo ser admitidas iniciativas que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento. Pode no entanto manter-se a iniciativa desde que os proponentes aceitem que a sua vigência só se inicie no ano económico seguinte. E uma terceira limitação, que diz respeito às matérias em que a iniciativa é expressamente reservada pela Constituição a determinadas entidades. É óbvio que não podem os grupos de cidadãos apresentar propostas de Orçamento de Estado, ou de Orgânica do Governo, ou de Estatuto Politico-Administrativo das Regiões Autónomas.

A questão porém é que, enquanto no projecto de lei do PCP as limitações são apenas estas, podendo as iniciativas legislativas populares incidir sobre todas as matérias que sejam objecto da competência da Assembleia da República, já o projecto do PS exclui do âmbito da iniciativa legislativa popular quase todas matérias incluídas na reserva absoluta de competência da Assembleia da República.

Esta limitação não faz sentido, porquanto a iniciativa legislativa popular não conflitua em nada com a competência legislativa da Assembleia da República. Ninguém propõe que a Assembleia compartilhe as competências que tem quanto à aprovação das leis. O que a Assembleia compartilha é apenas o direito de iniciativa. Por que razão há-de então ser limitado o direito de iniciativa popular?

São estas as questões que vão estar em debate até à aprovação final da lei. Permanecem algumas incógnitas quanto à configuração final de alguns aspectos essenciais. Certo e seguro, é que o Grupo Parlamentar do PCP tudo fará para que seja aprovada uma lei que permita uma maior abertura da Assembleia da República à participação popular e dar passos em frente no relacionamento deste órgão de soberania com o povo português.


«Avante!» Nº 1265 - 26.Fevereiro.98