Da democracia sem adjectivos
à democracia sem exclusões

Por Miguel Urbano Rodrigues


Em época alguma se falou tanto de democracia como na actual. Utilizando um permanente e perverso massacre mediático, um sistema de poder que trava o desenvolvimento da democracia como realidade concreta tenta persuadir a humanidade de que ela avança em todo o mundo.

A confusão principia na definição da palavra, isto é, no conteúdo da democracia.

Em artigo recente, publicado em "El País", o nicaraguense Sérgio Ramirez (1), com o objectivo de criticar as esquerdas latino-americanas, faz a apologia da democracia sem adjectivos. Enaltece a democracia no mero plano das instituições e combate a ideologização da democracia como fenómeno negativo. A simples garantia constitucional do exercício de direitos e liberdades aparece-lhe como valor quase absoluto. O resto virá depois.

Acontece que o resto é muitas vezes quase tudo.

A história ensina que a democracia como sistema de governo regulador do funcionamento de uma sociedade é sempre uma construção cujo conceito e práxis são definidos por aqueles que a proclamam e instalam.

Na primeira das democracias, a grega, uma parcela maioritaria do corpo social, incluindo os escravos, não tinha direitos de cidadania.

Nas cidades da Liga Hanseática e na Inglaterra da Magna Carta somente a aristocracia e a burguesia eram beneficiárias dos direitos garantidos pelas instituições.

Nos EUA, logo após a independência, a situação não era muito diferente. A democracia jeffersoniana, tão magnificada reservava o direito de voto a uma minoria de cidadãos, tal como a britânica.

Na prática da vida, a democracia sem adjectivos é pouco mais do que uma fórmula oca, utilizada por aqueles que se empenham em combater uma democracia participativa, que não exclua.

Pablo Gonzalez Casanova, num lúcido ensaio publicado pela revista cubana "Contracorriente" (2), lembra-nos que "o pensamento conservador e neoconservador do nosso tempo se apropria do pensamento liberal e neoliberal para forjar uma democracia elitista e excluente que acaba com as concessões sociais a que a burguesia se viu obrigada durante a ascensão das lutas operárias nas metrópoles e das lutas de libertação nacional nas colónias".

Pablo Gonzalez Casanova, que se move há mais de trinta anos na constelação da sociologia mundial como estrela de primeira grandeza, enuncia uma evidência muito incómoda para as forças políticas e económicas que erigiram o mercado em religião.

Nas grandes transformações em curso, o papel desempenhado pela social-democracia nos últimos anos foi muito importante e negativo ao tornar-se, também ela, paladina da democracia sem adjectivos.

No final do séc. XIX e no início do actual, a social-democracia ganhou força e prestígio batendo-se pelo sufrágio universal e pelas reivindicações dos trabalhadores. Mas a sua tentativa de eliminar o capitalismo através de reformas – pelo movimento, como dizia Bernstein – fracassou.

Hoje, não fala de eliminar o capitalismo; está com ele e defende-o. Presentemente, os partidos social-democratas (e os que na Europa se intitulam socialistas) adaptaram-se ao projecto neoliberal e sustentam com zelo as políticas de ajuste do FMI e do Banco Mundial, defendem o Estado mínimo e, em muitos casos, funciona como cúmplices (por vezes como autores, como sucede em Portugal) da estratégia de destruição pela base do edifício da Segurança Social, ou seja, de velhas conquistas dos trabalhadores nos terrenos da Educação, da Saúde e da Previdência em geral.

Uma outra definição da democracia surge-nos associada ao chamado nacionalismo revolucionário nos países do Terceiro Mundo. A extrema diversidade dos partidos e movimentos que integram esse grupo dificulta uma síntese de objectivos. Mas existe entre eles um denominador comum: a tendência a vincular a democracia representativa à participativa num contexto de pluralismo ideológico e de políticas económicas que incorporem elementos da social-democracia e do marxismo.

A história ds últimas décadas demonstra que, em muitos casos, o nacionalismo revolucionário tem funcionado como rampa de acesso para o caudilhismo e o populismo autoritário, sobretudo na América Latina e em África. Em diferentes países, dirigentes que impuseram desastrosas políticas neoliberais e hoje glorificam o mercado sem controlo subiram ao poder com um discurso populista de matrizes pseudo-revolucionários. Autênticas mafias co-governam alguns desses países.

Pablo Gonzalez Casanova, atento ao terramoto que desagregou a URSS, a flora igualmente as contradições e o funcionamento do modelo de democracia que, num contexto de grandes esperanças, se instalou em diferentes países após a vitória da Revolução de Outubro e no final da segunda guerra mundial.

Os "comunistas e marxistas-leninistas – sublinha – também construíram e definiram a democracia com sérios limites e exclusões. Oscilaram entre a crítica à "democracia" em geral, a qual identificaram com a definição liberal e burguesa de sistemas de governo úteis aos interesses e à formação do capital, e à exaltação de uma "democracia popular" ou "democracia socialista" em que ocultaram as estruturas de um poder autoritário e inclusive totalitário que realmente operavam".

Na sua crítica à prática e aos desvios do projecto original, o prof. Pablo Gonzalez Casanova alude aos "processos de corrupção e acumulação privada que chegaram a excluir a imensa maioria dos trabalhadores da representação e eleição de políticas genuínas, tornando-os simultaneamente beneficiários de prestações e concessões atribuídas com lógica paternalista autoritária, revestida de símbolos revolucionários".

Pablo Gonzalez Casanova não é comunista. Por isso mesmo, a opinião favorável que emite sobre o significado do socialismo participativo cubano na busca de alternativas adquire uma importância particular.

"Somente em Cuba – afirma – se manteve a vinculação de quadros e bases, mais por uma moral política que vem de Martí e por uma redefinição da luta em torno da emancipação nacional com bases populares do que propriamente por objectivos democráticos clara e abertamente delineados."

"A participação democrática do povo – prossegue – nas decisões aumentou com a educação e organização das bases e como parte de uma política de segurança nacional e de justiça social aprovada pela imensa maioria do povo cubano. O marxismo-leninismo foi redefinido a partir de posições morais – como assinala Armando Hart – e a direcção do processo inseriu-se num marco teórico e cultural mais amplo, o do pensamento libertário martiano. A partir dele aparecem as propostas de inserção na "globalidade" com preservação das vitórias sociais e emancipadoras, e os projectos de uma abertura democrática que, embora limitada pelo bloqueio norte-americano com a sua lógica intervencionista e belicista, expressa a prática concreta da luta do povo trabalhador em defesa das políticas sociais e da independência nacional, claramente ameaçadas."

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A crise global da civilização é hoje inocultável. Os próprios apóstolos do mercado sem controlo principiam a temer as consequências da sua engrenagem, como o prova o grande e justificado medo provocado pelo afundamento das bolsas e das moedas na Ásia Oriental.

Apesar disso, prossegue o bombardeio mediático sobre as supostas maravilhas de um mercado deificado.

A própria continuidade da vida na Terra encontra-se ameaçada pelo funcionamento selvagem de um mercado concebido para beneficiar uma minoria insignificante da humanidade em prejuízo da esmagadora maioria.

O discurso dogmático sobre a falsa democracia é, aliás, comandado pelas forças dirigentes de um país cujo comportamento como Estado imperial configura no final do milénio o mais absoluto desprezo pelos valores e pela prática da democracia.

É natural que numa época de incertezas, numa fase de refluxo da história em que as forças progressistas acusam os efeitos da desagregação da URSS e a implantação ali de um capitalismo mafioso, a ausência a curto prazo de uma alternativa de esquerda com credibilidade que seja mobilizadora para a luta – é natural e lógico que o imperialismo, os teólogos do mercado sacralizado e os porta-vozes do pensamento único tentem semear a confusão e o desânimo.

O discurso apologético da democracia sem adjectivos insere-se em tais campanhas. Essa gente teme a democracia participativa, aquela que não exclui o povo, a democracia que visa a integração da humanidade.

Por quase mítico que seja, o sonho da democracia universal não excluente responde a uma aspiração da própria condição humana. Perseguir a utopia está na vocação do Homem.

Pablo Gonzalez Casanova tem consciência das enormes dificuldades que se levantam no caminho da concretização do sonho. Precisamente por isso, me parece muito positivo que um intelectual não comunista de prestígio mundial, como ele, venha a público com um ensaio brilhante e profundo apontar Cuba como um Estado-nação cuja experiência, na teoria e na práxis, nos aproxima de algum modo de uma alternativa socialista que abra caminho, rumo à distante democracia universal.

Pode parecer romântico, numa fase tão crítica como aquela que a humanidade atravessa, discorrer sobre a procura de cenários políticos e sociais alternativos. Mas sem teoria, já dizia Lénine, não há revolução possível.

Estamos vivendo uma época de transições bruscas, brutais e profundas, comparável à que inspirou Marx e Engels, uma teoria que serviu de ferramenta a poderosas acções revolucionárias.

Os alicerces tecnológicos e científicos das sociedades contemporâneas, as relações de trabalho e produção, o quotidiano insuportável das grandes cidades, o ruir de princípios e valores milenares, a totalidade da vida na sua maravilhosa e dramática diversidade, estão a mudar num ritmo e numa direcção que não controlamos. É um desafio perante o qual nós, comunistas, não podemos permanecer passivos.

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(1) Sérgio Ramirez foi vice-presidente da Nicarágua durante a Revolução Sandinista. Posteriormente, rompeu com a Frente Sandinista de Libertação Nacional de cuja Direcção Nacional era membro, iniciando um processo de regresso às suas origens liberais.

(2) Pablo Gonzalez Casanova, "La democracia no excluyente", in revista "Contracorriente", nº 7, La Habana, 1997. Pablo Gonzalez é actualmente director do Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades da Universidade Autónoma do México e membro da Comissão Nacional de Mediação para o Conflito de Chiapas. Seu irmão, Enrique Casanova, também professor universitário, foi embaixador do México em Lisboa.


«Avante!» Nº 1265 - 26.Fevereiro.98