A TALHE DE FOICE

O regresso da PIDE


«Um Estado pobre, numa nação pobre, governada por um homem iluminado para quem a virtude residia no país profundo, respeitador das tradições e dos valores do passado - era este o Portugal de Salazar». As palavras constam do editorial do «Expresso» da semana passada e só não fazem cair o queixo de espanto porque há muito se desvaneceram eventuais ilusões sobre o verdadeiro espírito do semanário. E no entanto seria de esperar que quase um quarto de século após o 25 de Abril alguma réstia de bom senso, de pudor que fosse, impedisse que tais barbaridades fossem dadas à estampa.

Que pides, como os agora muito mediáticos Rosa Casaco ou Óscar Cardoso, queiram branquear a sua acção ao serviço do Estado Novo, entende-se. O que não se percebe é que um jornal como o «Expresso» se preste à mistificação da realidade, à deturpação dos factos, à adulteração da história recente do país.

Quando se afirma que «um Estado pobre, numa nação pobre» era governado por «um homem iluminado», o que se está a subscrever são as ideias-chave do salazarismo, que pregou até à exaustão a pobreza do país para legitimar a exploração do povo português.

Quando se diz que Salazar era um homem «para quem a virtude residia no país profundo, respeitador das tradições e valores do passado», o que se está a subscrever são os princípios do regime fascista que fomentaram a ignorância e o obscurantismo, armas fundamentais para a subjugação do povo português durante quase cinquenta anos, e a repressão de quantos ousaram lutar pela liberdade.

Quando se garante que «Salazar entendia que os portugueses deviam ser humildes, detestar a ostentação», o que se está a justificar é a brutal repressão sofrida por quantos portugueses ousaram reivindicar os seus direitos.

Quando se afirma, como o «Expresso» faz, que «o poder, ele próprio, era humilde», o que se está é a branquear o que foi a realidade do Estado Novo, em que meia dúzia de famílias detinham toda a riqueza nacional. As mesmas famílias que detinham o poder político, as que fugiram para o Brasil ou para a África do Sul no 25 de Abril, as que aí estão de novo com todo o seu capital económico a dominar de facto os destinos políticos do país.

Não é por acaso que hoje se assiste ao regresso dos pides, agora travestidos em funcionários públicos de um regime cujo único erro, como nos querem fazer crer, terá sido a tacanhez que o impediu de acompanhar a evolução dos tempos.

Por isso o «tempo da PIDE» que jornais como o «Expresso» se propõem «dar a conhecer melhor» é na verdade o tempo do branqueamento do fascismo. Como se a ditadura de Salazar, de quem se diz ter governado o país «como uma boa dona de casa governa a família» - atente-se no boa - não fosse um marco negro na história do país, manchado de sangue, prenhe de repressão, transbordante de exploração. Como se nunca tivesse havido fome, miséria, obscurantismo, campos de concentração, tribunais especiais, assassinatos, guerra colonial. Como se a PIDE não nos violasse a casa, não nos vigiasse todos os passos, prendesse e torturasse impunemente.

Só por ignorância ou por conivência se pode branquear a ditadura de Salazar. Nada nos permite concluir que o editorialista do «Expresso» possa ser rotulado de ignorante. Outros adjectivos exprimem melhor este olhar admirativo ao «tempo da PIDE». — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1265 - 26.Fevereiro.98