O aborto legislativo


A questão do aborto voltou à Assembleia da República, na passada quinta-feira. Não foi, como se previa a princípio, para fazer a votação final do projecto de lei sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez aprovado, por maioria absoluta, em 4 de Fevereiro. Foi, ao contrário, para debater o projecto sobre o referendo apresentado pelo PSD para obstruir aquele processo legislativo.

Em posição verdadeiramente caricata esteve colocada a bancada parlamentar do PS. Já não lhe bastava a vergonha de ter sido desautorizada pela direcção do seu partido em relação ao apadrinhamento do projecto da JS e ao papel que desempenhou, ao lado dos comunistas, no debate e na votação de 4 de Fevereiro

Foi-lhe exigido que desse o dito por não dito. Onde antes defendera com entusiasmo, aplaudira com calor e votara maciçamente que a sede parlamentar era a justa instância para a aprovação da nova legislação, veio agora dizer triste e acabrunhada que é em referendo que a matéria deve ser decidida.


Houve é claro quem desse a cambalhota com a ligeireza e oportunismo do costume. Mas o sentimento mais profundo na bancada parece ser, no entanto, de incomodidade, de protesto e até de indignação.

A aguda divergência que se verifica, a propósito, entre o líder do PS, António Guterres, e a maioria do grupo parlamentar constitui um conflito ainda maior e de mais graves consequências do que o de há um ano atrás.

Não é passível de desculpa a forma como a direcção do PS conspirou e se aliou com Marcelo e a direcção do PSD para, de fora da Assembleia, obstruir o processo da aprovação da lei despenalizadora e tramar o grupo parlamentar socialista.

Trata-se de um verdadeiro aborto legislativo feito clandestinamente pelas direcções do PS e do PSD. Atenta, como tem sido salientado, contra o estatuto constitucional e a lei do referendo e, a consumar-se, criaria um gravíssimo precedente. É além disso, desastroso para a credibilidade da Assembleia e o prestígio das instituições democráticas.


Até agora o referendo só serviu para abortar o processo que normalmernte se seguiria à votação de 4 de Fevereiro com os trabalhos de elaboração e votação da nova lei na especialidade, em comissão.

Tudo parou.

Há quem pense, com boas razões, que era este o único objectivo da duas direcções do «bloco central». Nem uma nem outra deseja realmente o referendo, pois, se este divide o PS, como se vê, o PSD também teme as divisões que ele pode originar.

Do lado do PS, foi Assis que declarou ao «Expresso»: «Não estou em condições de garantir em absoluto que o referendo sobre o aborto vá mesmo realizar-se».


No entanto, apesar deste pensamento reservado as direcções do PS e do PSD não estão livres de ter a sorte do aprendiz de feiticeiro: tanto advogam a indispensabilidade do referendo, que podem não encontrar nenhum argumento credível para o adiarem sucessivamente, como têm feito com o referendo da regionalização.

E se houver referendo qual é a posição do PS? A de Guterres? A da maioria do grupo parlamentar? Várias? Nenhuma? E a do PSD? Nenhuma, também?

Havia de ser curioso... — Carlos Brito


«Avante!» Nº 1265 - 26.Fevereiro.98