TVisto

Calúnias velhas
e um facto novo

Por Correia da Fonseca


Foi em «Enviado Especial». Apareceu José Manuel Barata-Feyo e, com o ar mais sério deste mundo, disse sem mais preâmbulos: «A Guerra Colonial portuguesa fez-se porque era do interesse da União Soviética que ela fosse feita. Guineenses, angolanos, moçambicanos, portugueses e os próprios cubanos foram apenas peões de uma estratégia que os ultrapassava. Com base em documentos secretos do Kremlin e em depoimentos de actualidade de altos responsáveis políticos soviéticos, portugueses, angolanos e cubanos, é hoje possível produzir esta afirmação.» Segui-se o telefilme que preencheria a rubrica, Nada nela justificava a intervenção inicial de Barata-Feyo: pelo contrário, nele estava claro que a guerra colonial foi a inevitável consequência da obstinação salazarista perante um movimento generalizado de independentismos coloniais.

Quanto muito, os primeiros sinais nítidos de apoio soviético ao MPLA (e, quanto a

intervenção soviética, só de Angola se falou ali) apenas surgiram no documenta. rio como natural simetria às intervenções norte-americana e alegadamente chinesa via FNLA, a dos massacres terríveis de Março de 61, e UNITA, a da provadíssima colaboração com a PIDE.

Significa isto que o próprio telefilme apresentado por Barata-Feyo vinha desmentir o jornalista e, em vez de fazer o prova a favor das suas graves afirmações, indiciava uma impressionante falta de rigor, tanta e de tal modo que aquelas palavras preliminares configuravam uma manobra de manipulação que contasse com a posterior, e infelizmente muito provável, desatenção do público. A questão é que calúnias lançadas contra os movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas e a solidariedade de comunistas (e de muitos outros, acentue-se ou, de muitos outros) com tais lutas têm sido mais que muitas ao longo dos 24 anos que já se contam desde 74. Tem-se chegado ao ponto de, sem objecções audíveis, se considerar que a acção da PIDE/DGS nas colónias na prática das tarefas mais sujas de uma guerra já por si suja é uma atenuante «patriótica» para os seus crimes. Neste quadro, a caluniosa viciação da realidade histórica praticada por Barata-Feyo terá tido boas probabilidade de eficácia. Por isso, de resto, aqui se regista não apenas para memória, como cumpre a uma cuna de acompanhamento da TV, mas também para rejeição, como a deontologia e o civismo obrigam.


A credibilidade enxovalhada

Convém, porém, atender a alguns aspectos complementares que talvez não o sejam tanto quanto parecern. Por um lado, ao facto de a rubrica «Enviado Especial» que agora se aplicou a transmitir esta peça de manipulação e viciação, estar longe de se ter afirmado como espaço de propaganda política: pelo contrário,nela se incluíram algumas das, melhores reportagens nos últimos tempos transmitidas pela RTP. Por outro lado, não será inútil lembrar que BarataFeyo tem tristes antecedentes quanto a trabalhos acerca de Angola incluídos num currículo profissional onde não faltam efectivos méritos. Quer isto dizer que quer a rubrica quer o jornalista adquiriram Uma credibilidade anterior agora jogada numa prática de reescrita da História aparentemente já tocada de obsolescência mas curiosamente, convergente com argumentações ainda hoje usadas pela extrema-direita saudosa do colonial-fascismo. E, pelo menos, desapontador; e porventura mais ainda pelo carácter grosseiro da falsificação. O que de facto o telefilme veio dizer foi que os levantamentos africanos se inscreveram num movimento histórico que a URSS apoiou, sem dúvida, mas a Posteriori. Os tais «documentos secretos do Kremlin» nem sequer pelo documentário passaram, se bem que, como se sabe, o que agora há de mais fácil é arranjar uma mão cheia deles pagos em dólares. Os «altos responsáveis» anunciados não passaram de um ou dois sujeitos, por sinal com má pinta, que não adiantaram nada de substancial e que vieram misturados com figuras conhecidas e respeitadas cujas palavras nem mesmo depois de submetidas a montagem vieram confirmar o que Barata-Feyo proclamara. Tratou-se, enfim, de um logro inábil, a contar com o efeito de imposturas antigas e longamente repetidas, com a vulnerabilidade de um público massacrado por bombardeios anteriores. «Enviado Especial» merecia mais respeito.

E a falta de respeito por «Enviado Especial» talvez tenha sido o único facto novo trazido pela intervenção de BarataFeyo.


«Avante!» Nº 1265 - 26.Fevereiro.98