TRIBUNA

A ditadura das multinacionais

Por Lino de Carvalho


O PCP requereu na passada semana a presença do Governo na Comissão de Economia da Assembleia da República para debater o Acordo Multilateral sobre o Investimento (AMI) que, no âmbito da OCDE, está a ser redigido e negociado, em segredo, por 29 países, entre os quais Portugal (no quadro da União Europeia).

Esta iniciativa do PCP pode ter feito nascer, para os que dela tomaram conhecimento, uma interrogação: o que é isso do AMI? Então não haverá outros assuntos mais importantes para o Grupo Parlamentar se preocupar?

Pois bem, este é um daqueles temas que marca a diferença e que exactamente pelo seu significado no plano do modelo de desenvolvimento global da Humanidade dá seguramente lugar a estratégicos debates sobre o mundo que queremos construir: se um mundo para a pessoa humana; se um mundo orientado para o todo poderoso mercado, para as multinacionais e os sistemas financeiros, para o lucro. Debates que dariam lugar, certamente, a um arco de realinhamentos ideológicos bastante interessantes. Não é seguramente por acaso que os negociadores deste tratado internacional o têm mantido em segredo durante três anos, tantos quantos leva de negociação. Eles sabem que o seu pleno conhecimento (e não através dos textos de propaganda da OCDE) daria lugar a uma discussão publica, a protestos por parte de sectores importantes na formação da opinião pública, a pressões sobre os Governos com vista à recusa da sua aceitação. O PCP quer contribuir para esse esclarecimento e para essa recusa à semelhança do que já se passa noutros países, como o Canadá ou a França.

Então o que é o Acordo Multilateral sobre o Investimento (AMI)? O AMI é um tratado internacional visando liberalizar o investimento estrangeiro e desregulamentando totalmente o investimento directo estrangeiro em cada País. É o alargamento das regras da Organização Mundial do Comércio aos mercados financeiros e ao investimento das multinacionais.

O que se conhece de uma das versões finais do documento constitui a demonstração mais acabada da construção em curso do sistema mundial capitalista e de um modelo de acumulação financeira mundializado traduzido, sem ambiguidades, numa recente afirmação de um destacado patrão de uma das multinacionais europeias a propósito de outra matéria mas perfeitamente aplicável ao AMI. O Acordo significa "a liberdade – para os grupos económicos – de se implantarem onde quiserem, pelo tempo que quiserem, para produzir o que quiserem, abastecendo-se e vendendo onde quiserem, suportando o mínimo de obrigações em matéria de direitos do trabalho, de convenções sociais" e, digo eu, em matéria de respeito pelos interesses de cada povo e de cada país.

Acordo, em adiantado estado de elaboração – esteve previsto ser assinado em Abril próximo – concede todos os direitos ás multinacionais e impõe todos os deveres e obrigações aos Governos e aos trabalhadores e povos de cada país. Num texto que corre na Internet intitulado "O novo manifesto do capitalismo mundial" é dito que "é preciso recuar aos tratados coloniais mais leoninos para encontrar exposto com tanta arrogância dominadora, como no AMI, os imprescritiveis direitos do mais forte – aqui, as sociedades multinacionais – e as obrigações draconianas impostas aos povos". E é verdade. Basta viajar por alguns dos capítulos e do articulado do projecto do Acordo.

Assim,

- num dos capítulos mais importantes do Acordo (intitulado Os direitos dos Investidores) é definido um direito absoluto de investir nas condições de desregulamentação previstas no texto e sem qualquer restrição, sendo disposto que nenhum Governo signatário do Acordo pode impor a uma multinacional a utilização de qualquer percentagem de trabalhadores ou quadros locais; fazer incorporar na produção qualquer percentagem de bens ou serviços de origem nacional; promover a participação de capital nacional no investimento em causa ou limitar, seja em que percentagem for, a exportação de lucros, etc..
Não há excepções nem sequer para a aplicação de leis que visem disciplinar as regras da concorrência ou, por exemplo, para a transferência de direitos de propriedade intelectual.
As multinacionais ficam com o pleno direito de serem tratadas exactamente nas mesmas condições que qualquer investidor nacional ou de um outro país com quem o Estado em causa tenha acordos bilaterais. Mesmo medidas necessárias a garantir o respeito das leis e dos regulamentos nacionais, a protecção da vida, da saúde humana ou animal ou a conservação de recursos naturais, biológicos ou outros, não se podem constituir em restrições ao investimento.
Isto é, os Governos dos países que assinarem o Acordo ficam impedidos de orientar ou sequer enquadrar o investimento estrangeiro em função de uma estratégia de desenvolvimento nacional e social e do interesse público, não podem aproveitar esse investimento para melhorar o emprego dos nacionais ou o respectivo conhecimento tecnológico e termina o conceito de nação mais favorecida. Nos termos e no espirito do texto conhecido não podem mesmo ser desencadeadas acções de impedimento do investimento estrangeiro, por exemplo, em relação a ditaduras sangrentas e violadoras dos direitos humanos. O projecto de tratado admite mesmo a possibilidade de entre um País e uma multinacional ser acordada a diminuição de normas relativas à protecção da saúde, à segurança, ao meio ambiente ou das leis laborais como instrumento de "encorajamento de um investimento" .

- Noutro capítulo intitulado "Protecção do investimento" o texto começa logo por determinar que um Estado tem a obrigação de oferecer "aos investimentos realizados no seu território uma protecção e segurança completas e constantes", não podendo conceder "um tratamento menos favorável do que o previsto no direito internacional" nem entravar de qualquer modo "a exploração, a gestão, a manutenção, a utilização, o gozo ou a alienação dos investimentos realizados".
Os Estados que subscreverem o tratado ficam impedidos, por razões de opção política nacional "de expropriar ou nacionalizar directa ou indirectamente um investimento realizado no seu território" ou tomar "medidas de efeito equivalente" . Nos termos do Acordo "a perda de uma oportunidade de lucro sobre o investimento é um tipo de prejuízo suficiente para dar direito a uma indemnização ao investidor".

Mas mais. Os Governos passam a ser responsabilizados pelas consequências de medidas de política ou quaisquer outras acções que decorram no seu território. Assim, um investidor que sofra um prejuízo no investimento realizado no território de um qualquer país subscritor do acordo por causa de uma guerra, estado de emergência, revolução, insurreição, tumultos civis ou outros acontecimentos similares (por exemplo boicotes ou greves) tem direito a ser indemnizado pelo "valor comercial do investimento" – o que implica inclusivamente os lucros potenciais e cessantes – que deve ser de imediato "plenamente realizado e livremente transferível". Aqui estará um oportuno pretexto para certos Governos tentarem limitar as liberdades sociais.

E quem regula os "diferendos"? Não são as leis e os tribunais do Estado em causa. O diferendo será submetido à jurisdição da Organização Mundial do Comércio através de um tribunal internacional arbitral constituído no âmbito do Comité Internacional para a Regulação dos Diferendos e cuja lógica de funcionamento é, óbviamente, a da desregulamentação dos mercados e a dos interesses das multinacionais.

Entretanto, assinado o Tratado, o País que quiser sair só pode manifestar esse desejo após cinco anos da sua entrada em vigor e essa saída só se poderá concretizar 15 anos depois. Isto é, um País tem de esperar 20 anos para poder renunciar ao Tratado.

Muitos mais exemplos há no projecto de tratado a que tivemos acesso não porque a OCDE ou o Governo português o tivessem divulgado mas porque gente atenta no Canadá e na França conseguiu romper com o segredo dos gabinetes e puseram-no a circular pelas estradas da informação. Hoje, o debate e a contestação neste dois países já subiu aos respectivos parlamentos e tomou conta da imprensa. Diga-se que não é fácil interpretar correctamente o texto em causa. Ele está propositadamente escrito numa linguagem jurídica cerrada onde, por vezes, o sentido verdadeiro do que está proposto é exactamente o inverso do que parece estar escrito. Mas o que acima fica dito e o que se conhece é suficientemente grave para podermos classificar este projecto de acordo de Nova Ordem das Multinacionais contra a soberania dos povos e dos países.

Até agora os sectores da cultura são aqueles que mais se têm mobilizado contra o projecto de tratado. Mesmo em Portugal já se ouviram vozes oriundas dessa área. Mas a questão não se limita à área cultural como se tudo o resto pudesse passar. O problema é mais vasto e tem a ver com uma operação política de grande envergadura visando ancorar cada vez mais o mundo à ordem única das multinacionais e do sistema mundial capitalista, impedindo os países e os povos de definirem soberanamente as suas estratégias e modelos de desenvolvimento e a sua própria especialização produtiva. Como recorda François Chesnay na última edição do seu livro "A mundialização do Capital" , "o lugar ocupado actualmente no sistema mundial de trocas por numerosos países em desenvolvimento não resulta de uma dotação de factores de produção natural, caída do céu. Num grande número de casos, a sua situação de produtor e de exportador de uma ou duas matérias primas de base, mineira ou agrícola, frequentemente cada vez menos procuradas pelos países industrializados, é o resultado de antigos investimentos directos feitos a partir dos anos de 1880 pelas administrações públicas ou por empresas estrangeiras, geralmente do país colonizador ou, quando se tratava de relações semi-coloniais, da potência que tutelava a zona de influência em causa". Este tratado, a ser agora negociado no seio dos gabinetes da OCDE, pode conduzir ao mesmo resultado.

Nem é verdade, como afirmam os propagandistas da OCDE que o AMI "dará um novo impulso ao crescimento e ao emprego, fazendo crescer o nível de vida". Hoje, mesmo sem este Acordo, a circulação do capital já está altamente liberalizado e desregulamentado e os resultados estão à vista: como afirma o Relatório do Desenvolvimento Humano/1997 da ONU "o grau de penetração das exportações dos países em desenvolvimento nos países industrializados é também muitas vezes exagerado. Para os países da OCDE as importações vindas de países em desenvolvimento representam apenas 3% do mercado de bens transformados." Poucos, aliás, são os países que beneficiam do Investimento Directo Estrangeiro (IDE) . E em matéria de comércio mundial os países menos desenvolvidos, com 10% da população mundial têm 0,3% do comércio mundial, metade da quota que tinham há duas décadas atrás.

Ora, o Acordo Multilateral sobre o Investimento virá agravar este quadro sendo peça da tentativa de consolidação da dominação mundial do sistema capitalista e, em particular das multinacionais e do sistema financeiro, contra um desenvolvimento harmonioso da humanidade onde a economia esteja ao serviço de quem produz riqueza, onde os povos e os países possam decidir soberanamente sobre as suas próprias opções políticas e de desenvolvimento. É a isto que se opõe o AMI e a ditadura das multinacionais. Por isso o PCP fez bem em suscitar esta questão na Assembleia da República e confrontar o Governo do PS com o que tem estado a negociar nas costas do País.


«Avante!» Nº 1266 - 5.Março.97