Notas em torno
do conflito iraquiano

Por Domingos Lopes


A brutal ameaça militar dos EUA ao Iraque parece ter-se desanuviado com o êxito da viagem de Kofi Annan a Bagdade, tendo a tensão baixado consideravelmente. Parece-nos, entretanto, que são de sublinhar algumas notas no rescaldo.


1. A actual administração dos EUA, na esteira da anterior, tenta fazer passar ao mundo que os interesses da América coincidem com os interesses da comunidade internacional e da ONU . Os EUA representariam os interesses da Humanidade, sendo uma espécie de país com uma missão providencial planetária. Em nome desses interesses os EUA poderiam intervir onde entendessem. No caso presente foram várias as declarações de Clinton e Albright que deixavam explícita a mensagem que são os EUA que têm a última palavra para confirmar ou não se o acordo entre o Iraque e o Secretário Geral da ONU respeita as resoluções da ONU. O mais alto representante da ONU e da comunidade internacional precisa, dentro desta filosofia, de submeter o seu acordo à supervisão do governo dos EUA. Enquanto outros membros do Conselho de Segurança se regozijaram com o acordo alcançado e por consequência com o afastamento do cenário de guerra, os EUA arrogam-se o direito, que ninguém lhe conferiu de verificar a letra, o espirito e até os pormenores desse acordo.


2. Os EUA agiram em toda a crise sem qualquer mandato da ONU. Com o Papa a condenar o bloqueio a Cuba e Mónica Levinsky colocada no centro da actualidade mundial, Clinton e o seu governo partiram para o Iraque mobilizando todo o seu fantástico aparelho militar. Trata-se de um dos actos mais conformes a velha prática imperial. No início deste século para a Inglaterra era suficiente mostrar a bandeira para pôr na ordem qualquer desordem; no nosso tempo, não basta a bandeira do novo império, é necessário que a bandeira seja acompanhada de todo o arsenal mortífero de armas, incluindo as tais "inteligentes.

A legitimidade do império advém da força militar. A exibição dessa força deve servir para intimidar quem quer que seja. Os argumentos dos EUA reduzen-se, pois, ao facto de nesta passagem do milénio serem a única superpotência com capacidade para mobilizar forças militares para qualquer ponto do Globo equipadas com as mais sofisticadas armas de destruição . No eventual ataque ao Iraque o arsenal mortífero e impiedoso visava a destruição de um conjunto de instalações, quartéis, aparelhos de segurança, unidades industriais... Como se não houvesse gente para as defender, como se tais ataques não voltassem a causar dezenas de milhares de mortos e não arrastassem um novo cortejo de horrores ao já martirizado povo iraquiano, cujo único crime que cometeu é viver no país onde há milénios nasceram os seus antepassados e onde há mais de um milénio as populações se converteram aos ensinamentos do Profeta Maomé.


3. Esta ameaça não tem justificação. O exercito do Iraque ficou desmantelado com a guerra do Golfo e o país está sujeito a um brutal e injustificado embargo que já causou centenas e centenas de milhares de mortos. O Iraque sofre terríveis dificuldades. É, por outro lado, um país com enormes jazidas de petróleo, o que lhe permitirá em caso de poder respirar recuperar mais facilmente. Ora é do petróleo que o Ocidente e o Japão dependem. E disso tem consciência os EUA que pretende manter a todo o custo a sua hegemonia na região. Um Iraque com um governo credível não é do agrado dos EUA que deixam de o poder utilizar o seu belo prazer como fazem agora com Sadam Hussein. Os EUA, em certo sentido, precisam de Sadam Hussein no poder em Bagdade para melhor puderem utilizar o espantalho da guerra e do ditador. Só que...


4. Os EUA não estão minimamente preocupados com ditaduras desde que os interesses dos EUA estejam em causa. Na região os regimes absolutistas monárquicos imperantes na Arábia Saudita e em todo o Golfo Arábico mostram bem que o Império colabora fraternalmente com as ditaduras mais violentas e retrógradas. Não há na Arábia Saudita, nos vários emiratos, sultanatos e reinos e até certas repúblicas qualquer liberdade democrática e vestígio de legitimidade popular. O que conta para os EUA é exclusivamente o cheiro a petróleo. Não há direitos humanos que se não possam trocar no altar dos negócios pelo néctar precioso saído das entranhas da terra, seja na Arábia Saudita ou em Timor-Leste . Que importa que o monarca saudita tenha as mãos manchadas de crimes horrendos praticados na terra onde nasceu o Profeta e nas terras árabes e muçulmanas por interpostos fundamentalistas ? Que importam os sofrimentos terríveis do povo maubere se a América precisa de Suharto, mesmo quando todo o povo indonésio clama pela sua destituição ? Que importam as centenas de milhares de mortos que levaram Suharto ao poder ? A América, o Império, tem os seus interesses próprios. É por esses interesses que vive. Por eles pode traficar, fazer guerras, impôr a sua força. Por isso há ditaduras e ditaduras. Com uns a América poderá estabelecer acordos, com outros não. Tudo depende dos interesses dos EUA... Mas,


5. Na região do Médio Oriente como todos sabem existe na verdade um Estado que viola há dezenas de anos resoluções da ONU, que ocupa militarmente territórios árabes na Palestina, na Síria, no sul do Líbano . E para além de estar fora da lei, possui a bomba atómica. E é o principal aliado dos EUA, o seu favorito e protegido. Os EUA exerceram muitas vezes no Conselho de Segurança o seu poder de veto para impedir outras resoluções. O actual governo extremista de Netanyahu violou todos os Acordos assinados em Madrid, Oslo e até o Protocolo de Hebron. Continua a sua vergonhosa política de expulsar populações árabes e instalar colonatos judeus e veja-se o que os EUA fazem para respeitar o direito internacional. Encorajam o prevaricador, fornecendo-lhe novos empréstimos, mais armas e mais apoios diplomáticos. O que interessa aos EUA é terem em centros nevrálgicos do globo quem quer que seja que actue em convergência com os seus interesses. Só que...


6. Os interesses dos EUA colidem com os interesses não só dos povos mas também de outras potências e países. Esta necessidade é bem visível na crise do Iraque. Há excepção do entusiasmo inicial do " socialista" Tony Blair , ninguém na Europa, se entusiasmou com a ameaça dos EUA. Jaime Gama dentro do seu estilo conhecido inconfundível de confundir os interesses dos EUA com os de Portugal " justificou" a cedência das Lages ao Tio Sam e mandou Luís Amado à Comissão de Negócios Estrangeiros borrar a pintura toda. Segundo o Sr. Secretário de Estado o governo português apenas renovou burocráticamente o acordo de utilização o que é feito de noventa em noventa dias, o que equivale a dizer que o governo português de noventa em noventa dias permitirá a utilização das Lages aos EUA mesmo que estes a usem para desencadear uma acção militar que poderá fazer de Portugal alvo de outro tipo de retaliações políticas, económicas e militares. Ora países como a França, a Rússia e a China, sobretudo a França tentaram por vários meios que justamente a solução diplomática se impusesse à utilização da força. Os países árabes, mesmo os que alinharam na Guerra do Golfo com os EUA, incluindo os seus mais fieis aliados , manifestaram-se por uma solução diplomática.

Com efeito, a política hegemónica dos EUA e a protecção a todo o custo de Israel esbarra com interesses de potências europeias e da China, assim como dos países arábes que também por diferentes motivos de ordem interna não podem apoiar a política dos EUA para o Médio Oriente.

As várias opiniões públicas dentro de cada país perceberam que esta crise, tal como já sucedera na guerra do Golfo, não iria trazer nada de positivo. Um pouco por todo o lado e com particular relevo dentro dos EUA se levantam vozes e movimentos contra o ataque militar . 7 cardeais e 47 bispos dos EUA enviaram uma carta a Clinton onde afirmavam que os bombardeamentos não tinham qualquer justificação. Não será forçar a nota se afirmarmos que de um modo silencioso, em contraste com o alarido da exibição da força brutal, nasceu uma nova consciência que a Humanidade não pode ser regulada pelos ponteiros do relógio de Washington. A própria opinião pública dos EUA está contra a intervenção. Em Portugal, onde não há grandes tradições de manifestações e empenho cívico contra as intervenções militares e em defesa da paz, foram reveladas sondagens em que a maioria dos portugueses se manifestava contra a utilização do território nacional no conflito. Esta situação faz ressaltar um paradoxo na situação internacional. Os EUA, um país líder do capitalismo mundial, tendo vencido transitoriamente a URSS e outros países socialistas, quase dez anos depois de se afirmarem como única superpotência mundial não é capaz de congregar em torno de si, as principais potências mundiais. É este um caso único ou tendencialmente iremos assistir a mais casos, face à agudização das rivalidades capitalistas ?


7. Esta nova situação mundial exige do governo português uma postura radicalmente diferente. Foi vergonhosa a vassalagem prestada diante de Washington. Portugal precisa de ter boas relações com todo o mundo árabe e não só com este ou aquele país. Na procura de equilíbrios e de compensações face ao eixo que é a Europa , Portugal necessita vitalmente de ter um bom relacionamento com os outros países, nomeadamente os países de expressão oficial portuguesa e os países ribeirinhos no Mediterrâneo e os países do Próximo e do Médio Oriente, aliás indo de encontro às marcas profundas da História de Portugal.

Num conflito pautado pelos EUA, a posição de Portugal devia ser mais prudente. Devia colocar todo o seu peso na busca de uma solução diplomática, e se ela não se verificasse colocar as Lages fora do conflito.

Portugal tem relações diplomáticas com muitos países que têm sistemas políticos diferentes do português. Uma das questões centrais das relações internacionais é exactamente o do estabelecimento e desenvolvimento das relações independentemente dos sistemas. Por isso Portugal tem relações com algumas da ditaduras mais sanguinárias do mundo árabe. E ninguém defende que Portugal corte relações com a Arábia Saudita e o Oman. A essa luz é inconcebível que Portugal não tenha reaberto a sua missão diplomática em Bagdade.

O Iraque é um país destruído e logo que cesse o embargo vai necessitar de investimentos de todo o mundo. É também um país exportador de petróleo, e Portugal importador. Neste quadro os interesses de Portugal passam por uma atitude ponderada e bem pesada no sentido dos interesses nacionais ganharem. Não nos admiraríamos se os EUA que elegeram o Iraque como inimigo não acabassem por liderar a corrida à reconstrução do Iraque e que as empresas norte-americanas não se afirmassem no terreno.


8. A questão da ameaça e do perigo da guerra veio colocar a todos os homens e mulheres que prezam a paz como bem valioso a necessidade de um despertar para os perigos da nova ordem mundial.

É necessário um empenho cívico das várias opiniões, que desaguam no leito dos que entendem que as soluções diplomáticas são sempre preferíveis às militares. O mundo necessita de uma política de cooperação, paz e diálogo atento aos contraditórios interesses dos países e povos.

Cabe, pois, aos cidadãos organizados ou não em partidos, associações e movimentos tomadas de posição que se traduzam em acções concretas pela defesa da paz e contra o hegemonismo dos EUA.

Neste contexto é certo e seguro que os comunistas poderão desempenhar um acrescido papel na luta por este objectivo. Mas torna-se necessário um espírito de luta , de abertura e diálogo com outras forças democráticas e indivíduos. Não bastará gritar pela paz para que nasçam e fortaleçam amplos movimentos de paz. É necessário neste mundo tão complexo e contraditório e sem referências de contraponto como as que existiam, ser mais ousado, mais convincente no caminho a percorrer por tal objectivo.

Nenhum comunista ganha pelo facto de o ser, uma legitimidade acrescida nesta batalha. A legitimidade decorrerá sobretudo da capacidade de explicar, aprender, compreender para transformar o mundo em que vivemos. É este o mundo que queremos transformar, que é transformável, e que acabará por ser transformado.

Apesar das doses cavalares de anestesia servidas pelos principais "media" é estimulante verificar que a opinião pública norte-americana era contra a intervenção e que a opinião pública portuguesa era contra o envolvimento de Portugal no conflito.

Elas reflectem que apesar das lavagens ao cérebro não é possível liquidar os sonhos, as aspirações, os interesses dos povos e dos indivíduos. E mostra que há um terreno para trabalhar e organizar, tendo em conta as características do tempo presente, uma forte corrente de opinião pública que aponte a solução dos problemas internacionais com base em princípios diplomáticos, ou seja, privilegiando as vias políticas sobre as vias militares.

Ao fim e ao cabo as vozes belicistas porque têm mais meios de bombardeamento mediático querem-nos fazer crer que vivemos na selva para tapar, adormecer e anestesiar os sentimentos pacíficos da Humanidade.

Esta é uma batalha à qual os comunistas não podem virar as costas. É uma batalha que se prende com a batalha mais vasta da luta por uma alternativa democrática à actual política de direita.

Quando os comunistas falam em reforçar o Partido, quando falam em alargar a influência do Partido, é impossível deixar de lado este campo de luta.


«Avante!» Nº 1266 - 5.Março.97