A TALHE DE FOICE

Os Mofina Mendes


Alguns ministros sentiram-se esta semana compelidos a dizer coisas, acabando por beneficiar o país com um inesperado auto-retrato governamental.

Sousa Franco mobilizou a Comunicação Social para anunciar que já estão cumpridas as metas de integração na moeda única, pelo que está no papo a entrada de Portugal na estreia do euro. Resultado: a especulação disparou na Bolsa de Lisboa a caminho de mais um alegre crash e o marco alemão tratou de nos meter na ordem com mais uma desvalorização do escudo.

Enquanto o ministro das Finanças resplandecia na sua inimitável auto-satisfação, o ministro da Defesa, Jorge Coelho, passou revista a 100 jipes da Guarda Fiscal novinhos em folha e, depois de lhes espreitar os motores ao som da fanfarra da corporação, descobriu algures, entre as válvulas e os filtros, que vinham aí quase 10 milhões de contos para apetrechar as forças policiais e inundar o país de segurança.

É realmente extraordinário o que se pode conseguir com 100 jipes.

Não muito longe, o ministro da Ciência e Tecnologia, Mariano Gago, constatava perante uma plateia de universitários que a produção de doutorados em Portugal tem vindo a crescer a um ritmo anual de 10%, o que o conduziu a duas conclusões: uma, a de que um dia destes alcançamos a melhor média europeia neste tipo de actividade, outra – e decorrente da primeira -, a de que tal abundância de doutores permitirá ao «panorama científico em Portugal» igualar, ou mesmo ultrapassar, a média dos seus congéneres europeus mais desenvolvidos.

Ora cá estamos nós outra vez a dar novos mundos ao mundo. Enquanto os países desenvolvidos da Europa andam há décadas armados em parvos a enterrar biliões em fábricas, universidades, laboratórios, centros de investigação, aplicações tecnológicas, programas de desenvolvimento, etc. etc., nós produzimos doutores e passamo-lhes a perna.

Literalmente, é de ficarmos gagos – nós, a Europa e o mundo.

Para rematar, o inevitável ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, além de ocupar duas páginas do Diário de Notícias a deslumbrar-se consigo próprio («fiz imensas coisas na vida para além de dar aulas», «sou muito realizador», «ao nível dos comentadores tentam emparedar-me, limitar a minha acção», etc., etc.), ainda teve disponibilidade para debitar nexos extraordinários, como o de serem os partidos, «por vocação», «instrumentos de conquista e manutenção do poder».

Só mesmo este homem tinha a candura de confessar o que os seus parceiros de Governo procuram esconder a todo o transe: que, afinal, a «política do coração» do Executivo do PS/António Guterres se limita – igualzinho ao PSD - a bater pela conquista e manutenção no poder.

No Auto de Mofina Mendes a heroína transportava à cabeça um cântaro de azeite recém-adquirido, ao mesmo tempo que planeava um futuro risonho, garantido pela venda do produto: primeiro comprava ovos, dos ovos sairiam aves, as aves dariam porcos e etc. etc., até ao triunfo de um casamento faustoso e prestigiante. Como se sabe, acabou em tropeço no chão, partindo a bilha e derramando o azeite e os sonhos.

Quando Gil Vicente compôs a figura de Mofina Mendes estava, mais uma vez, a advertir os seus contemporâneos com uma história exemplar.

O que não podia imaginar – apesar do seu enorme talento e inventiva – é que estava também a descrever os governantes do Partido Socialista chefiados por António Guterres.

Cujo, além de engenheiro está rodeado de doutores, o que, no raciocínio de Mariano Gago, transforma o seu Governo num Executivo de ponta que nos anda a abençoar a todos. — Henrique Custódio


«Avante!» Nº 1266 - 5.Março.97