Falou um pide


Afinal falaste. Cuspiste os ódios. Confessaste a desfaçatez na prática do crime. Revelaste o rosto hediondo da Pide, a arrogância dos torcionários, a cobardia da impunidade...


M
uito tem sido dito sobre as entrevistas do pide Casaco ao «Expresso». Na grande maioria, com manifesta indignação. Em alguns casos com ambígua complacência. O tema continua actual porque a ele estão ligadas a história e a memória do que significou a pide na vida ainda recente do nosso país, do nosso povo.
Ninguém mais que os comunistas tem tanto conhecimento directo do que foi a pide, dos seus crimes, do seu tenebroso papel na vida portuguesa. Temos direito a falar mais alto, a dizer mais alto a indignação ante o tortuoso emergir de recuperações pidescas.


O
governo de Cavaco Silva agraciou com pensões «por serviços distintos prestados à Pátria» dois dos mais responsáveis agentes da pide. Os tribunais deram aos agentes da pide penas simbólicas ou mandaram-nos em paz. Com o título «A bem da Nação» está publicado um livro onde um agente da Pide faz a descarada defesa e exaltação da PIDE. Um torcionário assassino com mandado de captura apresenta-se sem dores de consciência («voltaria hoje a ser da Pide», afirmou arrogante) fotografado nas páginas de um semanário junto à Torre de Belém com ares de um bondoso avô da pátria.
A nossa Pátria não se mistura com a dessa gente. Só faltaria darem aos pides, «a bem da Nação», uma condecoração ainda por inventar no Diário da República. A de torcionários servis e cobardes? Ou de «honrados cidadãos» que, como os nazis, conseguiram ver seres humanos contorcer-se até à morte pela tortura e logo a seguir chegar ao aconchego da sua casa, acariciar o cão, beijar com ternura a mulher e os filhos? Porque um pide é isto: fica de alma tranquila, deixando atrás de si corpos mortos, torturados, dos que recusaram viver de joelhos.


O
pide Casaco descreve o assassinato de Humberto Delgado e da sua secretária, executados por uma brigada de facínoras por ele chefiados, com o à-vontade e a alegria de quem tivesse vivido uma aventura de Sandokan ou a missão de um Super-Homem. Descaradamente, pretende fazer crer que desconhecia a premeditação do crime, como se ignorasse a finalidade da cal viva, do ácido sulfúrico, das pás e picaretas que a sua brigada transportava nos carros da «operação Delgado».E com o mesmo descaramento confessa (como fez perante a polícia espanhola) que ele próprio foi dos que espalharam a calúnia de atribuir aos comunistas a responsabilidade pelo assassinato de Delgado.


O
entrevistador do «Expresso» diz que o assassinato de Delgado foi «o maior crime praticado pela Pide» e «o mais requintado e sórdido dos crimes do salazarismo».
A acusação é forte, mas não suficientemente exacta. A história da Pide foi, toda ela, um caso que se chama crime continuado. A sua própria existência constituiu o crime continuado de sufocar o país, espalhar o medo, perseguir o povo. Como crime continuado foi o seu papel de instrumento de tortura e morte, como o testemunharam Militão Ribeiro, Bento Gonçalves, José Moreira, Alex e tantos outros assassinados pela Pide, os que tombaram nas manifestações antifascistas, os que para sempre ficaram mutilados nas prisões e na tortura, até aos que, já depois do 25 de Abril, foram abatidos frente ao covil onde os pides assassinos estavam cobardemente acoitados.
A humanidade tem no seu passado muitas páginas belas e muitas páginas negras.
Não é por um pide voltar à ribalta que fica branqueada essa página negra da história do povo português.  — Aurélio Santos


«Avante!» Nº 1266 - 5.Março.97