Comemorações e hipocrisia no 8 de Março como todos os dias
A igualdade constrói-se
nas lutas pela felicidade



Perante o alastramento do trabalho precário, dos longos horários, dos baixos salários, da falta de infraestruturas de apoio às crianças e à família, não bastam declarações de ocasião. Os problemas da discriminação das mulheres no trabalho e na sociedade têm que ser resolvidos com mudanças políticas e medidas concretas, que ataquem a desigualdade na raiz.

Manuela Prates — dirigente do sindicato dos Têxteis do Sul, da União dos Sindicatos de Lisboa e da Comissão Nacional de Mulheres da CGTP, Alexandra Gonçalves —, membro do organismo de direcção da Função Pública da Organização Regional de Lisboa do PCP, chefe de divisão (Recursos Humanos) na Direcção-Geral da Energia e presidente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, e Helena Gonçalves —, dirigente da Fenprof (coordenadora nacional do 1º Ciclo) e do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (vice-presidente), colocam especial ênfase na necessidade de criar condições objectivas para que as mulheres possam ter uma maior intervenção social em todas as áreas. E sublinham que esta é uma batalha por uma vida harmoniosa e feliz, em que mulheres e homens combatem lado a lado por interesses e aspirações comuns.

«Avante!»:
— Como encaram as várias iniciativas que assinalaram o 8 de Março este ano?

Manuela Prates: Na CGTP e na sua Comissão Nacional de Mulheres procurámos fazer tudo no sentido de chamar a atenção para os problemas das trabalhadoras. Uma das grandes preocupações que temos prende-se com o desconhecimento que as mulheres têm dos seus direitos, o qual está a levar a um retrocesso no exercício desses direitos. Neste 8 de Março centrámos os nossos esforços nas empresas onde a mão-de-obra é principalmente feminina, procurando informar e esclarecer as trabalhadoras sobre os seus direitos, nomeadamente os relacionados com a maternidade. Estivemos envolvidas, com outras organizações, em importante iniciativas por todo o País, com destaque para Lisboa, Porto e Beja.

Alexandra Gonçalves: Eu tive ocasião de participar no concerto promovido pela Alta Comissária para a Igualdade e pelo secretário de Estado da Comunicação Social. Nada tenho a apontar ao programa e à forma como decorreu, mas não vi lá as mulheres que luta todos os dias pelos seus direitos e contra a discriminação.
À margem das comemorações, importa salientar que é uma luta de mulheres a luta que decorre na Administração Pública pela reestruturação de carreiras. Tem havido uma muito boa participação nos plenários sindicais, como já não se via desde o fim da década de 70.
Esta é uma luta predominantemente do sector administrativo da Função Pública, e aqui 90 por cento são mulheres, o que significa que estão muitos milhares de mulheres em luta por uma carreira digna.

Helena Gonçalves: O dia da comemoração é uma ocasião para lembrar a História, e isto é cada vez mais importante, para passar aos jovens o testemunho desta luta e das suas razões. A acção reivindicativa por melhores condições tem que ser desenvolvida no dia-a-dia.


Interesses profissionais
e causas sociais

Os sindicatos têm um papel muito importante, que vai para além dos sectores profissionais que representam. Entre os professores, por exemplo, continuam a ter um grande peso as mulheres, pelo que muitos dos problemas dos professores são necessariamente problemas de mulheres. Mas também desenvolvemos lutas por melhores condições de ensino, e estas têm a ver com toda a sociedade.
Lutamos, com persistência e determinação, para que seja resolvido o problema dos professores contratados, que são obrigados, durante anos e anos, a andar com a casa às costas como o caracol, sujeitos a uma instabilidade com prejuízos directos nos seus rendimentos, na sua vida pessoal e na família.

MP: Também nos têxteis o emprego precário é um muito grande obstáculo a que as mulheres, principalmente as jovens, usufruam plenamente dos direitos que lhes estão reconhecidos, como as idas ao médico para consultas de gravidez, o direito à amamentação, os direitos dos trabalhadores-estudantes.

HG: Estamos também a desenvolver uma campanha em defesa do ensino pré-escolar. Apesar de este Governo ter aprovado uma lei que garante o alargamento da educação pré-escolar, verifica-se na prática que esse movimento está a tardar, não está a ser feito o que a lei estipula. Resolvemos, por isso, lançar um abaixo-assinado para exigir aquele alargamento. Nas escolas do primeiro ciclo, reclamamos medidas para melhor as condições em que funcionam, particularmente no que respeita aos refeitórios e aos tempos livres das crianças.

AG: Penso que esta luta dos professores em torno do pré-escolar, dos refeitórios e dos tempos livres merece ser mais alargada, porque diz respeito a todas as mulheres e homens do nosso país. Sem conseguirmos um generalizado acesso ao ensino pré-escolar e, no primário, os refeitórios e os tempos livres dos nossos filhos, não é possível as mulheres terem maior participação na vida social e na vida política. Só depois destes problemas resolvidos é que se poderá questionar por que não estão mais mulheres na política ou na vida sindical. Pelo sector onde estou, não tenho dúvidas que muito mais mulheres participariam na vida política ou sindical, se não tivessem que, depois do trabalho, sair a correr para os transportes, para ir buscar os filhos à escola ou à ama, para ir às compras... Não ficam com disponibilidade para outras actividades. Não é possível, por exemplo, discutir paridades ou outras alterações semelhantes nas leis eleitorais, se não tivermos estes problemas resolvidos.
Vou levar para o meu local de trabalho o abaixo-assinado do pré-escolar e não tenho dúvidas de que vai ter uma grande aceitação.

MP: Esta falta de infraestruturas de apoio à família é uma questão sentida por todas as mulheres, sejam quais forem os sectores onde trabalham. Há alguns, contudo, onde esta necessidade se faz sentir mais. É o caso do sector têxtil e, dentro deste, o vestuário — que tem 90 por cento de mão-de-obra feminina. O problema ganha ainda maior gravidade devido aos baixos salários e aos elevados horários de trabalho que são praticados.
Devido à forte repressão e intimidação das trabalhadoras, nós temos frequentemente dificuldade em recolher apoios para abaixo-assinados nalgumas empresas de vestuário. Por incrível que pareça, foi extremamente fácil fazer essa recolha nas empresas onde já chegou este abaixo-assinado, mesmo naquelas onde as pressões são mais fortes e onde, muitas vezes, as pessoas têm dificuldade até em receber um documento sindical. Tenho já, de uma destas empresas, uma folha completa e a delegada sindical diz que, se mais folhas houvesse, mais assinaturas teria recolhido. Isto mostra bem como o problema é sentido.

HG: Por outro lado, as falhas a nível da educação pré-escolar e dos tempos livres e refeitórios do 1º ciclo vão provocar fenómenos como os meninos-de-rua, ultimamente tão falado. As famílias mais afectadas são as de mais baixos rendimentos. O que vemos são os meninos-de-rua abandonados, os meninos-de-rua a serem agressivos, os meninos-de-rua a serem cuspidos de todo o lado... e começa-se já a pensar na escola-oficina para os meninos de 10 a 12 anos, em vez de se fazer as alterações de fundo nas condições das escolas e nas estruturas de apoio às famílias.
Assim, são excluídos das condições para o cumprimento da escolaridade obrigatória. Mas há já também casos de exclusão de alunos, de expulsão de meninos da sua escola! Em vez de exigirem equipas multidisciplinares para responder a estas situações, pais e professores transferem o menino agressivo para outra escola. Isto é o caminho mais curto para o abandono escolar.


Discriminações
impunes

Nos professores não temos situações de discriminação salarial entre homens e mulheres. Mas faltam condições para o exercício dos direitos das mulheres e persistem mentalidades que impedem esse exercício.
As professoras mães têm reconhecido por lei o direito à amamentação, mas as educadoras e as professoras do 1º ciclo, quando têm monodocência, enfrentam sérias dificuldades e mesmo tentativas de lhes ser cortado esse direito, porque as escolas não têm capacidade para funcionar no período que elas faltam.
Há também responsáveis que pretendem retirar esse direito, por exemplo, às professoras contratadas. E o sistema permite tais atitudes, porque deveria rapidamente dar informações claras e combater estas mentalidades.

MP: Ao falarmos nas condições dos pais para darem a necessária assistência aos filhos, devemos contrariar a tentativa de culpabilizar as mulheres por tudo o que se passa de mal em relação às crianças, e que também tem outra intenção: face ao aumento do desemprego, pretendem remeter cada vez mais as mulheres para o lar. Os verdadeiros responsáveis são aqueles que não criam as condições para que homens, mulheres e crianças tenham direito à felicidade.
Até que ponto a flexibilização dos horários de trabalho não vai agravar toda esta situação? Considero hipocrisia plena quando os senhores governantes vêm continuar a falar nas famílias e no bem-estar das famílias, mas aprovam legislação laboral que vai pôr em causa a possibilidade das famílias serem famílias, terem tempo para o lazer e os pais terem tempo para comunicar com os filhos.
Num sector como o vestuário, os ritmos de trabalho são intensíssimos e contribuem para o envelhecimento precoce das mulheres. Esta flexibilização dos horários vai provocar graves consequências nas condições de trabalho e a todos os demais níveis, vai impossibilitar mais mulheres de participar na vida cívica, vai ter reflexos na família e nas crianças.
Olhando para o pré-escolar, podemos perguntar: então e vão flexibilizar também o horário das trabalhadoras das creches e jardins-de-infância? Vamos ter que flexibilizar também as horas de alimentação das nossas crianças?

— Como comentam as medidas anunciadas pelo ministro Jorge Coelho neste fim-de-semana?

HG: Se não for um novo acto de hipocrisia, acho muito importante esta iniciativa de apoio à mulher vítima de violência.

AG: Qualquer medida deste tipo é sempre importante. O problema é que os discursos, como vimos no do senhor ministro, ignoram sempre quais as causas da violência doméstica, e por aí é que se devia começar. Assim, julgo que esta será sobretudo uma medida de marketing, para a opinião pública.


Palavras
e mais nada

HG: Ao falar destes temas, vê-se que este Governo tem um comportamento mesmo hipócrita: utiliza uma linguagem favorável à resposta a problemas como aqueles de que estamos a falar, mas no concreto não actua em conformidade com essa linguagem.
Este Ministério da Educação, por exemplo, tem vindo a anunciar que é sua intenção criar condições para a participação dos pais nas escolas. Mas o que está a fazer é com que alguns pais possam participar nos órgãos de gestão; a todos os outros — por tudo aquilo de que temos estado a falar — veda a possiblidade de terem a relação que seria mais conveniente para o sucesso das crianças e que exigiria um acompanhamento maior e um contacto mais regular com a escola e os professores.
Por este caminho, quer o Ministério que tenhamos as escolas «de excelência» e as «dos outros». Isto é muito mau para o ensino e para a felicidade das pessoas e uma vida harmoniosa.


— Fez agora um ano que foi aprovado pelo Governo o Plano Global para a Igualdade. Que balanço se pode fazer dos seus resultados?

MP: Para já, não foi suficientemente divulgado.

AG: E ainda bem, senão criava falsas expectativas!...

MP: O Plano Global surgiu sobretudo para o Governo poder afirmar que estava a fazer alguma coisa. A verdade é que não fez nada a favor das mulheres e das famílias, à excepção de medidas insuficientes no combate à violência.

AG: Ninguém, por parte do Governo, surgiu a fazer esse balanço, o que não deixa de ser digno de registo. O Plano foi apresentado pela Alta Comissária para as questões da Igualdade e da Família, em vésperas do 8 de Março, e não teve o devido empenhamento dos ministérios que lhe deviam dar execução. Isto mostra que a preocupação principal do Governo foi, realmente, dar a ideia de que estava a fazer qualquer coisa. Depois de aprovado, nem sequer foi divulgado pelos serviços dos ministérios; salvo as excepções da Justiça e da Solidariedade Social, os ministérios também não lhe deram qualquer atenção.
A medida de mais fácil execução prevista no plano não foi realizada: incluir temas relacionados com a igualdade de oportunidades nos cursos de formação dos agentes da Administração Pública. Neste ano houve até muitos trabalhadores a frequentar cursos, mas nem sequer foi feito um esforço para passar esta mensagem nos serviços responsáveis pela formação!
A proximidade dos cônjuges como factor preferencial nos concursos da Administração Pública já estava prevista por lei antes de surgir o plano global. É pena é que isso não seja considerado em tantos e tantos casos, como os professores contratados e os muitos outros trabalhadores precários. No plano surgiu apenas como uma maneira de preencher espaço a dizer que vão dar atenção a isto. — Domingos Mealha

«Avante!» Nº 1267 - 12.Março.1998