A TALHE DE FOICE

Manuais


Ainda é cedo para saber se será um êxito editorial, mas a expectativa nas esquadras da PSP e postos da GNR é grande. É de crer que em breve qualquer cidadão poderá assistir à insólita cena de deparar com os agentes da autoridade, nos tempos mortos da sua actividade, dedicados à leitura dos novos manuais com que o Governo decidiu brindar as corporações. A saber: o «Guia Novo Rumo», espécie de manual de sobrevivência destinado às mulheres vítimas de violência doméstica, e o manual de bem atender as vítimas, destinado aos agentes da ordem.

Esta foi a forma peregrina encontrada pelo executivo para assinalar de modo condigno o 8 de Março, Dia Internacional da Mulher.

Segundo notícias vindas a público, a ideia é a seguinte: sendo um facto a violência doméstica, que vitimiza sobretudo as mulheres, e sendo certo que as polícias nem sempre sabem lidar com ocorrências deste tipo, nada melhor do que colocar nas mãos dos policiais uma nova arma - no caso, duas - para o combate ao terrorismo conjugal. A partir dos fins de Março, se tudo correr bem, os agentes da autoridade, sempre que confrontados com questões deste tipo, em vez de sacaram da pistola ou do bastão para neutralizar o criminoso, vão passar a sacar dos manuais para industriar as vítimas. Inovador.

Se essa espécie de guia de bem atender as vítimas não suscita grandes perplexidades - quem é que nunca deparou, directa ou indirectamente, com a total falta de sensibilidade da autoridade face ao cidadão fragilizado por um qualquer motivo? -, o mesmo não se pode dizer em relação ao manual de sobrevivência das mulheres, o tal «Guia Novo Rumo».

Vejamos: uma mulher brutalizada pelo marido acorre à esquadra mais próxima para apresentar queixa. Solícito, o agente, sempre que possível feminino, convida-a a sentar-se o mais comodamente possível, num local longe dos olhares indiscretos, oferece-lhe um chá de camomila ou um copo de água com açúcar e, enquanto a vítima vai bebericando a promessa de calma à mistura com lágrimas de dor e de revolta, apresenta-lhe o manual. Estando a mulher incapaz de ler devido à agitação que a consome, cabe ao agente folhear o livrinho à procura do conselho que mais se adapta ao caso em questão. «Ora vamos lá a ver... cá está, página X, parágrafo Y... sempre que o seu marido começar a disparatar não fuja para a cozinha, que há lá facas e outras coisas perigosas, nem para o quarto dos fundos, venha antes para a rua. Tenha sempre uma janela aberta; se a porta estiver trancada, sempre pode tentar sair por ali... isto se morar num rés-do-chão, evidentemente, não queremos que se magoe nem que se arme em mulher-aranha, não é verdade? E não se esqueça de trazer as chaves, claro. E moedas para o telefone, para nos poder chamar, se não houver esquadra por perto. De preferência traga também os documentos, caso esteja a pensar não voltar a casa. O ideal mesmo é ter uma malinha preparada com uma muda de roupa, sempre é mais seguro... Já se sente melhor? Então vamos lá agora ao capítulo que ensina a "minimizar e neutralizar situações de conflito"... Está a perceber o que lhe estou a dizer? Se não estiver, diga, que nós estamos aqui para a ajudar...».

Bebido o chá, acalmados os ânimos, terminada a leitura, a vítima voltará para casa, à falta de alternativa, com muitos conselhos e uma recomendação: «para a próxima vez que o seu marido lhe bater, não se esqueça de arranjar uma testemunha, está bem? Por causa da queixa...». — Anabela Fino

«Avante!» Nº 1267 - 12.Março.1998