MOTES & VOLTAS
Palavras malditas
O que é notícia? O que não é notícia?
Todos os dias, nos órgãos de informação, em todo o mundo, se faz a triagem das notícias, cujo interesse determina a publicação, ou não. É a actividade de gatekeeping, tão bem descrita, nas suas condicionantes, no livro "Os Jornalistas e as Notícias", da autoria de Fernando Correia, que se tornará, estou certo, numa obra de referência no estudo da Comunicação Social.
O que é notícia? O que não é notícia? Quem determina? O que é que determina?
A comunicação televisual, pela velocidade e
globalidade da cobertura noticiosa, criou um poderoso meio de informação, e instrumento
operativo nas opções políticas dominantes.
Dominada por algumas agências grossistas de distribuição de imagem, basta fazer um
pouco de zapping para avaliar o poder de controle do fluxo noticioso, posto ao
serviço dos interesses estratégicos dos Estados Unidos. As operações mediáticas, com
apurada precisão cirúrgica, precedem, acompanham e integram as iniciativas políticas,
diplomáticas e militares em que estão directamente envolvidos.
A tendenciosa cobertura dos acontecimentos no Kosovo, em vésperas de mais uma cimeira em
Londres sobre a ex-Jugoslávia, representa apenas um exemplo.
Constitui, aliás, um interessante exercício, acessível a qualquer espectador ou leitor
da imprensa, registar os casos, cada vez mais numerosos, de articulação e sincronia
entre as operações políticas da potência dominante e o seu suporte mediático.
O que é notícia? O que não é notícia?
Leiam-se os jornais ou veja-se a cobertura televisiva
sobre as comemorações do dia 8 de Março. A RTP, como canal de serviço público,
chama-nos a atenção.
O relevo é para as iniciativas oficiais, o brilho das solenidades ou simples fait-divers,
qualquer eco longínquo, esfumado e breve, da tragédia das mulheres afegãs, outras
apressadas imagens, aliás de péssimo gosto, de mulheres pioneiras na sua profissão, uma
reportagem chocarreira sobre uma feira pornográfica em Bruxelas, a nova capital.
Naturalmente, não podia faltar o ministro Coelhone, essa inefável figura que
visita todos os dias, à sobremesa, os lares portugueses, ora de cenho franzido e dedo em
riste a apostrofar a oposição, ora em pose de Estado, a percorrer um posto de Polícia a
anunciar investimentos de milhões.
Mas no Porto, no dia 8 de Março, muitas centenas de mulheres se reuniram no Auditório Carlos Alberto, desfilaram pelas ruas, manifestaram-se com alegria, com confiança, com força, dando luz às palavras justas, necessárias, concretas, da igualdade de direitos.
O que é notícia? O que não é notícia?
Para alguns gestores noticiosos, isto parece não ser notícia. O Telejornal ignorou.
Nesta nossa paróquia, à escala doméstica, a
manipulação informativa vai fazendo o seu percurso.
Já não há lápis azuis da censura a retalhar parágrafos, a amputar palavras, a
cortar notícias e crónicas. Agora os lápis, róseos ou laranjinos, tão só
cortam das agendas, ou retiram dos alinhamentos, ou simplesmente anulam os factos e as
notícias com interesse público mas sem interesse para os interesses dominantes.
Numa época em que a comunicação se tornou paradigma, em que a informação, além de
bem social, se tornou um produto comercial e numa poderosa arma política, em que a
manipulação, subtil ou grosseira, tomou o lugar da censura, os jornalistas têm uma
acrescida responsabilidade.
Responsabilidade como profissionais, como cidadãos.
Por isso, não se pode deixar de saudar a corajosa
reflexão empreendida pelos jornalistas da rádio, da televisão, dos jornais, no nosso
país, por iniciativa do Sindicato das Telecomunicações ou do Sindicato dos Jornalistas,
sobre o mercado, as relações com o poder político e económico, as condições de
trabalho a que associam, sempre, os valores éticos e deontológicos que integram o
exercício da profissão.
O debate só agora começou. Mas durante o recente Congresso dos Jornalistas, um destes
gestores da informação terçou armas contra os profissionais que abertamente assumem as
suas opções políticas e partidárias.
Falsa pista.
Como a prática demonstra, quem mais tem posto em causa o pluralismo, a isenção, a verdade informativa, não são os que têm convicções políticas claras e assumidas, mas outros que, sacrificando muitas vezes os valores éticos e deontológicos, mudam de convicções ao sabor dos mandantes a quem servem.
Estas palavras ética deontologia ainda correm o risco de, neste tempo de mercantilização de ideias e consciências, se tornarem palavras malditas...
«Avante!» Nº 1267 - 12.Março.1998