TVisto
Uma ocorrência infeliz

Por Francisco Costa

É com reconfortante satisfação que me incluo no número daqueles que cada vez mais se servem do videogravador de uma forma inteiramente fria, programada e calculista, ou seja, utilizando-o como instrumento regulador da liberdade de decisão pessoal - como verdadeira barreira contra a generalizada e tendencialmente totalitária estratégia de programação e alinhamento de todas as estações de televisão (sem excepção), que julgam poder dispôr a seu bel-prazer do nosso tempo e da nossa disponibilidade, quando não da nossa distraída vulnerabilidade.

É assim que pude passar a decidir e controlar aquilo que vejo e quando vejo, a ultrapassar o transtorno provocado pela opção de horários absurdos, a não sofrer a inconveniência dos sucessivos e frequentes ecrãs de publicidade - para além do pequeno distúrbio que constitui o acto de ter de pressionar o botãozinho do comando à distância para ultrapassá-los em utilíssimo fast foward quando visiono o que gravei previamente -, assim devolvendo ao dito videogravador a sua estupidificada função de máquina que não pensa e que, portanto, não reaje e não se irrita, limitando-se a obedecer às minhas egoístas instruções de programação.

Com a maior das naturalidades e sem nenhuma intenção de preparar material para uma crítica, foi este o sistema que mais uma vez utilizei na passada sexta-feira no sentido de ir para a caminha, deitar-me descansado e deixar a gravar não apenas o agora repetido «September Songs» com as magníficas canções de Kurt Weil (cuja cassete original entretanto perdera na confusão da minha estante) como também a fabulosa versão (que julgava ainda não ter visto) da ópera «Tannhäuser» de Richard Wagner na encenação de 95 do Teatro Nacional de Munique, com a direcção musical de Zubin Mehta e as portentosas vozes de Rene Kollo ou Waltraud Meier nos principais papeis. Portanto, dois belíssimos programas que a RTP 2 transmitiu de sexta para sábado, entre as 5 e as 9 da manhã (!), ou seja, a horas absolutamente inimagináveis em qualquer outro serviço público que se preze. Isto na sua tão «original» estratégia de copiar (também aqui) os ditames da SIC - que continua a rir-se de tanta subserviência - e em comemoração de mais um aniversário da sua existência. Com duas-maratonas-duas, totalizando 48 horas de emissão contínua, na qual também se ficaram a perder, de sábado para domingo, duas obras-primas de Fritz Lang, ainda por cima muito pouco repetidas, como são «M» ou «O Testamento do Dr. Mabuse»! Enfim, desperdícios de quem não sabe como melhor utilizar o dinheiro dos contribuintes, assim convertido em subsídios a fundo perdido (e de que maneira!) por parte do Governo...

Foi, então, na minha qualidade de telespectador «normal» que, dias depois, me refastelei no cadeirão da sala para proceder ao visionamento da dita ópera, quando fui surpreendido por algo de verdadeiramente impensável. Acontece que, passado um minuto do início da Abertura, a qualidade da imagem começou a ser perturbada por problemas nitidamente relacionados com a máquina de videotape utilizada na sua transmissão (porventura desalinhamento das cabeças de leitura, sujidade das mesmas e consequente profusão de drop out) e ainda mais agravados a partir dos 4 minutos, pelo que alguém de bom senso resolveu mandar tirá-la «do ar», precisamente aos 6m 15s de emissão. Até aqui, nada de criticável: ocorrências destas, apesar de lamentáveis, são «normais» em transmissões de televisão.

O problema é que não só essa interrupção foi feita de forma bastante precipitada - sem qualquer aviso prévio ou explicação a posteriori e através da inserção brutal, praticamente «colada», de um separador de identificação da estação, uma promoção de telenovela (às 6 da manhã!) e ainda uma outra frenética montagem de imagens de arquivo, extremamente agitadas, à base de uma música penetrante e insidiosa - como, depois, se retomou a transmissão do «Tannhäuser», mas apenas em momento ligeiramente anterior àquele que justificara a interrupção. Como se o respeito pela integridade da obra, com a repetição dos primeiros 6 minutos, fosse causar atrasos na emissão! Como se atrasos muito piores não acontecessem diariamente por motivos bem mais supérfluos! No fundo, como se o «responsável» de serviço tivesse pensado com os seus botões: «Ora, ora, quem é que está a ver esta chatice a estas hora da madrugada?»!

Assim se cometeram duas barbaridades de uma assentada: por um lado transmitiram-se algumas preciosidades a horas verdadeiramente impróprias; por outro, reconheceu-se na prática, num acto gratuito e impensado, a inutilidade de tal transmissão. E ninguém ficou a ganhar com a graça: nem aquele melómano com insónias que acabou por se retorcer de indignação, nem mesmo a dezena de carolas, como eu, que resolveram dar uso ao gravador. Que em momento de comemorações festivas da nossa televisão pública uma ocorrência como esta tenha acabado por ser o móbil desta crítica televisiva é coincidência sintomática, que não dá qualquer satisfação ao cronista.

«Avante!» Nº 1267 - 12.Março.1998