Armadilhas

Por Octávio Teixeira
Membro da Comissão Política do CC do PCP


É sbaido que o PS e o PSD se apresentam irmanados em todo o processo conducente à realização de um ou mais referendos em Portugal com características vergonhosas do ponto de vista democrático.

O PS, lógica e naturalmente apoiado pelo PSD e CDS-PP, fez inscrever na Constituição, em 1997, a exigência de um referendo prévio à concretização da Regionalização Administrativa do País, o qual poderia ser feito até finais de Junho próximo, não fosse a abusiva ligação que o PS estabeleceu entre este referendo e a actualização dos cadernos eleitorais.
Dando o dito pelo não dito, e após a votação maioritariamente favorável de um projecto de lei do seu próprio Grupo Parlamentar visando a despenalização do aborto até às 10 semanas, o PS voltou atrás e quer impor um referendo prévio à aprovação final dessa lei. Criando o grave precedente de se vir a referendar uma matéria que já foi aprovada pela AR, podendo pôr em causa a legitimidade e representatividade do Parlamento, com as inevitáveis ilações e consequências políticas.
Assumindo uma atitude de desrespeito e desconsideração com os portugueses, o PS, de braço dado com o PSD, depois de ter recusado, em 1992, um referendo sobre o Tratado de Maastricht, quer agora realizar um referendo fraude sobre a União Europeia. Impedindo que seja referendada a questão central da evolução da União Europeia: a Moeda Única, como passo "irreversível" para uma Europa federalizada.
Acresce a estas questões políticas essenciais que o PS, de novo com o apoio activo do PSD e do CDS-PP, diz pretender realizar estes 3 referendos num espaço de 4 meses, realizando em simultâneo dois dos referendos (o da regionalização e o da UE). Abrindo as portas à violação prática do preceito constitucional que proíbe a inserção de mais de uma matéria num referendo - realizando, simultaneamente, tantos referendos quantas as matérias a colocar. E criando um factor de forte confusão com a junção de dois referendos, num país que nunca fez referendos e com um grau elevado de ileteracia. Significando uma violência politicamente irresponsável sobre os eleitores e consubstanciando o desejo desses partidos de confundirem a opinião pública "obscurecendo o sentido das decisões políticas que os eleitores vierem a tomar" e de impedirem o "debate rigoroso e sério de questões que são da maior importância política".
Mas o PS e o PSD não se limitam a dizer que pretendem. Eles próprios vão anunciando publicamente que os seus acordos nesta matéria se regem por datas exactas para a realização das consultas referendárias e pela junção de 2 desses referendos numa mesma data. Um descaramento total e despudorado, dos pontos de vista democrático, político e institucional, já que essas decisões competem, em exclusivo, ao Presidente da República.
É legitimo supor que terá sido essa a razão que levou a que em 26 de Fevereiro passado, em nota de imprensa da sua assessoria para a comunicação social, o Presidente da República tenha feito saber que "exercerá as suas competências constitucionais próprias quer quanto à análise da constitucionalidade dos processos legislativos, quer quanto à oportunidade dos calendários eleitorais que só ao Presidente compete interpretar e marcar, tendo em vista o interesse do país".
Era de admitir que, pelo menos a partir desse momento, o PS deixasse de pretender substituir-se ao Presidente da República em matérias que só este tem competência para decidir.
Mas não!
PS voltou à carga e, sempre em parceria com o PSD, prossegue a caminhada de confronto objectivo com o Presidente da República, armadilhando-lhe todo o processo de modo a tentar retirar-lhe margem de manobra nas sua opções e a procurar impor-lhe, na prática, o calendário que o PS negociou com o PSD.
É manifestamente essa armadilha que o PS e PSD têm em curso em torno da legislação sobre referendos e em torno dos referendos em concreto, que está subjacente à lei "orgânica" do referendo que aprovaram e à sua intenção de fazerem votar no dia 19 de Março (hoje) a Resolução da Assembleia da República atinente à realização de um referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez.
Vejamos em que consiste, para aquilo que agora me proponho relevar, essas armadilhas perpetradas pelo PS com o apoio interessado do PSD.
A lei do referendo impõe que a convocação de um qualquer referendo tenha de ser feita com um prazo mínimo de 60 dias (este prazo mínimo, proposto pelo PCP, teve de ser "engolido" pelo PS por razões de imposição constitucional, já que o seu desejo assumido de um prazo mais reduzido era gritantemente inconstitucional). O que significa, na prática, que a realização do eventual referendo sobre a IVG em 5 ou 12 de Julho (como o Têm defendido PS e PSD) exige que a sua convocação, da exclusiva competência do Presidente da República, tivesse de ser feita, o mais tardar, em 4 ou 11 de Maio. Sucede, porém, que entretanto está em curso um processo legal de actualização extraordinária dos cadernos eleitorais que o Governo tem afirmado só estará concluído no final de Maio. E que, por acréscimo, o diploma legal que determinou essa actualização impõe que não pode haver qualquer acto eleitoral ou referendário antes de passados 30 dias da fixação definitiva dos cadernos eleitorais actualizados.
O que significa que, para satisfazer os desejos políticos do PS e PSD de realização do referendo a 5 ou 12 de Julho (em qualquer caso já em período de férias para muitos portugueses), esses dois partidos pretendem "obrigar" o Presidente da República a convocar o referendo antes de existirem cadernos eleitorais actualizados. Com um risco político acrescido para o Presidente da República: é que, se por qualquer razão, os novos cadernos eleitorais só vierem a estar concluídos, por exemplo, em meados de Junho, o referendo que o Presidente da República tivesse convocado não poderia legalmente vir a realizar-se!
Ainda insatisfeitos com esta inadmissível pressão sobre o Presidente da República, PS e PSD querem votar hoje a Resolução sobre o referendo da IVG. O que, para aquilo que agora me ocupa, tem como consequência imediata o início da contagem de um conjunto de prazos processuais que, no seu cúmulo máximo, atingem os 54 dias. O que significa que, a levarem em frente esta sua disposição, PS e PSD estão, também por esta via e mais uma vez, a pretender ilegitimamente impor ao Presidente da República a convocação de um referendo antes de estar concluída a actualização extraordinária dos cadernos eleitorais!
Mas essa ameaça de eventual e despudorada aprovação da Resolução pelo PS, com o PSD e o CDS-PP, no dia de hoje, suscita outras questões.
É inequívoco que a revisão constitucional de 1997 introduziu alterações no regime do referendo. Daí decorreu a apresentação, pelo Governo, de uma proposta de lei visando alterar a lei orgânica do referendo actualmente em vigor, visando adequá-la ao novo texto constitucional. Depois de alterado o texto proposto pelo Governo, de acordo com interesses meramente partidários e conjunturais do PS e PSD, essa lei foi aprovada na Assembleia da República no passado dia 5 de Março. Tal lei, antes de ser promulgada, como se afigura natural e parece resultar claro da declaração da sua assessoria para a comunicação social ("tudo deve decorrer de forma a que não subsistam dúvidas de natureza jurídica"), deverá ser enviada pelo Presidente da República ao Tribunal Constitucional, tendo por objectivo a fiscalização prévia da sua constitucionalidade.
Por outro lado, parece igualmente claro que qualquer referendo a realizar após a revisão constitucional de 1997, exige que todo o processo conducente à sua realização deve decorrer nos termos e nas condições resultantes da nova lei orgânica do referendo. Assim, e para além de ser politicamente insustentável, parece ser constitucional e juridicamente exigível que a eventual aprovação de uma Resolução parlamentar visando a realização de um referendo só poderá ter lugar depois de a lei orgânica do referendo, conforme com o novo regime constitucional, ser promulgada e publicada.
Se assim não for, se o PS e o PSD forçarem a aprovação de tal Resolução em data anterior a essa publicação, então deixará de haver qualquer dúvida que aqueles dois partidos estão voluntariamente apostados em afrontar o Presidente da República e a conspirarem contra o exercício das suas competências constitucionais próprias.
Em suma, e à laia de conclusão. Que tudo isto, que todo este vergonhoso processo interesse ao PSD, que nas eleições presidenciais apoiou um candidato que se opôs ao Dr. Jorge Sampaio, ainda se pode perceber. Mas que faz correr o PS nesta maratona de armadilhas contra o Presidente da República? Será que o PS, não querendo realizar nenhum referendo, visa encontrar um responsável que assuma a responsabilidade que ele não tem a coragem de assumir?
Esperemos que o Presidente desmonte as armadilhas e decida "tendo em vista o interesse do país".


«Avante!» Nº 1268 - 19.Março.98