Ainda o Encontro de Jornalistas de Línguas Ibéricas
A voz de um zapatista


O recente Encontro de Jornalistas de Línguas Ibéricas, de que demos conta no anterior número do nosso jornal, constituiu um verdadeiro manancial de intervenções, durante o qual se ouviram as vozes de um mundo onde os Direitos Humanos pecam normalmente pela ausência e onde os jornalistas, ao invés de se interrogarem sobre o seu papel, assumiram-no largamente em defesa de ideias progressistas, das liberdades e da justiça social. Ouvi-los foi ouvir lutas que se desenrolam longe, mas que nos dizem respeito.

Escolhemos desta vez publicar a intervenção de Raúl Jardón, jornalista mexicano, que não escondeu, antes orgulhosamente se mostrou militante de esquerda. Jardón iniciou a militância política com 15 anos - tem hoje 48 -, nas juventudes comunistas, vindo a militar no Partido Comunista do México até à transformação deste em partido socialista. Hoje é membro da Frente Zapatista.
Eis o essencial da sua comunicação:

"Devo declarar que o convite original foi feito para que viesse aqui o companheiro sub-comandante Marcos, do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), mas por esta altura ele encontra-se um pouco ocupado a iludir o cerco militar cada vez mais estreito que o governo do meu país estende em torno das comunidades zapatistas, em vez de perseguir os grupos paramilitares que cometeram o massacre de 45 indígenas em Acteal, Chiapas. Isso impediu inclusivamente que pudesse inteirar-se a tempo deste encontro e enviar a mensagem que certamente teria querido fazer-vos chegar e assim me coube a mim estar convosco porque os companheiros da Frente Zapatista de Libertação Nacional, organização irmã do EZLN disseram: «Já que se trata de um encontro de jornalistas, que vá um zapatista que é jornalista e lhes conte, como jornalista e como zapatista, o que está vivendo o povo mexicano nestes dias.»
Assim, a primeira coisa que tenho a dizer-vos é que, tanto para os companheiros indígenas e camponeses das comunidades zapatistas em Chiapas, como para os integrantes da Frente Zapatista em todo o México, é muito importante e estimulante que se convide o companhjeiro sub-comandante Marcos a reuniões como estas, porque convites assim mostram o interesse, a esperança e a solidariedade que despertou no mundo a luta empreendida pelos «mais pequenos», os indígenas cuja palavra o EZLN ergueu desde o 1º de Janeiro de 1994, e que se sentem irmanados com todos os explorados, oprimidos ou discriminados em todo o mundo.

Companheiros jornalistas:
Certamente sabeis que nas últimas semanas o governo do meu país se converteu no campeão mundial da xenofobia e do chauvinismo. O mesmo regime que acata docilmente os ditames do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial acerca de como se deve conduzir a economia, o mesmo regime que se sente orgulhoso de ter modificado as nossas leis nacionais para poder assinar o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, o mesmo regime que suplica de joelhos à União Europeia para que não tome demasiado a sério a sua «clausula democrática» e que esqueça o massacre de Acteal para assinar um acordo de livre comércio; esse mesmo regime logo se reclama de um suposto nacionalismo que havia lançado ao lixo em nome da modernidade e da globalização e descobre «demónios estrangeiros» que, segundo ele, ameaçam uma pátria cujos interesses esse regime defende na hora de dançar ao ritmo do índice Dow Jones, Nikkei ou do «efeito do Dragão».
Esses «demónios estrangeiros» não são outros senão as centenas de jovens, principalmente europeus e estadunidenses que, entusiasmados pela esperança zapatista, estão compartilhando dos sofrimentos das comunidades indígenas chiapanecas e interpondo os seus corpos e câmaras fotográficas entre essas comunidades e os comboios militares e policiais que, na verdade, além de ameaçarem com as suas armas, também fotografam e filmam até as crianças para as identificar como «subversivos transgressores da lei».
Disse o governo do meu país que está expulsando estrangeiros apenas quando se intrometam em assuntos políticos nacionais, mas, caramba!, desde quando é intervencionismo interpor o corpo entre um soldado armado e um indígena desarmado, ou viver durante semanas numa aldeia perdida na selva para conseguir que a comunidade se sinta mais segura, pois os grupos paramilitares, que segundo o governo não existem, só pensam duas vezes antes de atacar uma comunidade quando temem a repercussão internacional que teria o testemunho ou os danos a esses companheiros estrangeiros?
Os mexicanos de bem dizemos: não, esses companheiros estrangeiros não são intervencionaistas ,são iguais ao espanhol Francisco Xavier de Mina que nos ajudou a lutar pela nossa independência, são iguais aos irlandeses do batalhão de S. Patrício que nos ajudaram a lutar contra a invasão estadunidente de 1847; são iguais a Abraham Lincolkn que condenou essa invasão. São, simplesmente, nossos irmãos.
Mas, pasmai, companheiros jornalistas, o governo que hoje persegue estrangeiros no México é o mesmo que se nega a cumprir a palavra dada pelos seus representantes que assinaram em Fevereiro de 1996 os Acordos de Santo André porque, segundo ele, esses acordos põem em perigo a unidade nacional e podem fazer surgir outra Bósnia ou balcanizar o nosso país.
E que dizem os Acordos de Santo André sobre direitos e cultura indígenas que assinaram os representantes do governo mexicano com o EZLN e que esse mesmo governo se nega a cumprir?
Pois esses acordos nem sequer elevam a autonomia dos povos indígenas a níveis como os que conquistou o povo catalão dentro do Estado espanhol.
Não, são muito mais simples e modestos. Apenas me referirei às quatro partes que o governo objectou e satanizou. Uma é a que reconhece a autonomia, porém dentro do Estado mexicano e estabelecendo a obrigação de que os pareceres e resoluções que se levem a cabo nas 56 etnias do país deverão ser ratificadas pelas autoridades jurisdicionais do Estado e deixando claro que o respeito dos usos e costumes indígenas terá lugar sempre e quando se salvaguardem os direitos civis e humanos de todas as pessoas, especialmente das mulheres. Outra assinala que respeitarão os normativos internos das etnias e que as zonas em que os povos indígenas façam valer a sua autonomia serão entidades de direito público e que os municípios que se autodefinem como indígenas poderão associar-se, mas apenas para coordenar as suas acções sem romper o pacto federal. Uma ainda estabelece, seguindo exactamente as disposições do Convénio 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificado há tempos pelo Senado do meu país e portanto convertido em lei nacional, que os indígenas têm direito ao usofruto colectivo das suas terras, territórios e recursos naturais, excepto aqueles que a Constituição estabelece como propriedade da nação e assinala que as etnias têm direito a conceber programas educativos para elas e a dispor dos seus próprios meios de comunicação. Finalmente, a quarta parte que o governo vê como ameaça à unidade nacional simplesmente estabelece que devem aprovar-se leis que instituam a concorrência da acção dos governos federal, estatais e municipais nas acções e determinações sobre os povos indígenas.
Pois bem, essas são as coisas que o governo se nega a conceder, impedindo assim que se avance no sentido da paz.
Entretanto, desde a matança de Acteal não foi dissolvido nenhum grupo paramilitar, nem se avançou na investigação sobre as autoridades que patrocinaram o surgimento e a acção criminosa desses grupos paramilitares para combater as comunidades zapatistas. E não se avançou nisso apesar de a Comissão Governamental de Direitos Humanos ter reconhecido no seu relatóirio sobre o massacre de Acteal que este teve a cumplicidade de «algumas» autoridades superiores, tanto nesse facto como na actividade dos paramilitares.
Entretanto, a polícia e o exército só encontram armas ilegais fora da zona do conflito chiapaneco e nem sequer descobriram todas as que se usaram na matança de Acteal.
Entretantio, há mais de 10 mil deslocados em Chiapas que não podem voltar às suas aldeias por temerem ser agredidos pelos paramilitares e as detenções policiais e militares neste Estado multiplicam-se, anulando a liberdade de trânsito estabelecida constitucionalmente.
Entretanto, em Estados do centro e do norte do país, como Queretaro, Chiahuahua e Baixa Califórnia reprimem-se ou prendem-se membros da Frente Zapatista sob diversos pretextos.

Companheiros jornalistas:
Isto é o que se está a passar no meu país enquanto estamos aqui reunidos.
O México tem cerca de 92 milhões de habitantes e, entre estes, cerca de 10 milhões de indígenas. Os números oficiais reconhecem que mais de 40 por cento dos mexicanos vivem na marginalidade e na pobreza. Graças às lutas populares abriram-se muitos espaços democráticos, entre eles o termos hoje meios de comunicação muito mais livres, mas a situação em Chiapas faz com que muitos respeitados analistas políticos do meu país assinalem que não se pode saber, todavia, se o México está realmente em transição para a democracia plena ou para um regime mais autoritário do que aquele que temos sofrido até agora.
Oxalá este breve resumo que vos apresentei sirva para alertar a socierdade das vossas respectivas nações àcerca da encruzilhada em que se encontra o meu país, encruzilhada na qual amplos sectores da sociedade exigem mudanças profundas em favor da maioria, mas há forças poderosas que querem fechar os espaços conquistados. Encruzilhada na qual os companheiros do EZLN acataram a vontade da sociedade e por isso não usaram as armas, mas, pelo contrário, fizeram da palavra o seu principal instrumento de luta.
Não deixeis que essa palavra seja calada pela força! Não permiti que voltem a falar as armas! Vós, nosoutros, como jornalistas, podemos ajudar muito a impedir a guerra; temos apenas uma arma, pequena e às vezes desprezada, mas muito poderosa: dizer a verdade, cortar o passo à mentira que sempre se usa para justificar a violência.

Obrigado."


«Avante!» Nº 1268 - 19.Março.98