A TALHE DE FOICE

Surdos e tontos


Guimarães, Praça do Município, segunda-feira passada. Ávidas de espectáculo, as televisões mostraram em directo a multidão que se foi espraiando pelo terreiro empunhando cartazes com um único dizer: «Por Guimarães». Em movimentos de câmara gulosos, as reportagens televisivas não perderam pitada: agora, um grande plano enchendo de rostos o ecrã; depois, um pormenor dos oradores em discurso inflamado; a rematar, uma panorâmica denunciando as clareiras da concentração. Seguiram-se alguns «diálogos de praça» - adaptação dos clássicos diálogos de rua - todos desencadeados pela mesma pergunta dos repórteres: «O que é que está aqui a fazer?».

Toda a gente sabia: estavam ali «para defender Guimarães». A coisa apenas se complicava quando os repórteres insistiam com uma segunda pergunta, inevitável e decorrente da resposta: «Defender de quê?». Aí, alastrava o atabalhoamento que, após várias mastigações, desembocava na resumida explicação de que «querem tirar-nos Guimarães!». Uma senhora já de idade, empunhando o seu cartaz onde avultava o arredor de onde a trouxeram - esperamos que em confortável autocarro -, foi mais longe e recordou patriotica e risonhamente às câmaras, atrás das quais sabia estar o País, que «foi aqui que nasceu Portugal, é aqui que deve estar a capital!».

A verborreia dos promotores da manifestação «Por Guimarães» misturara de tal maneira os alhos e os bugalhos na invenção duma nova revolta da Maria da Fonte, que a pobre senhora se convencera estar numa cruzada pela elevação de Guimarães a capital do País, arrastando diversas outras - da mesma idade, do mesmo entusiasmo e, certamente, do mesmo autocarro com que as levaram de passeio à cidade-berço -, a concordar veementemente com este original projecto de fazer a capital regressar às origens.

Enquanto grassavam pela praça estes engraçados entendimentos da luta «Por Guimarães», no palanque, o presidente PS da Câmara, António Magalhães, garantia que «a vossa presença aqui dá-nos a força necessária para continuar a lutar para que o nosso concelho não venha a ser retalhado de forma afrontosa ao povo de Guimarães!», rematando com a pesada sentença de que «o meu partido está surdo, mudo e tonto!».

Antes que alguém tema, com tais alvíssaras, que Guimarães esteja sob a ameaça de um novo conde de Andeiro, entendamo-nos e tranquilizemo-nos.

O que Magalhães e seu pares receiam não é uma nova investida de galegos, uma invasão de espanhóis ou, sequer, o ataque de uma multidão de costureiros de tesoura em riste, prontos a retalhar a bela cidade de D. Afonso Henriques.

O que faz vociferar Magalhães e seus pares da organização da inventona «Por Guimarães» é, simplesmente, a subida a concelho da Freguesia vimaranense de Vizela que esta semana vai ser decidida na Assembleia da República, agregando mais oito freguesias que integram o Vale do mesmo nome (cinco também do Concelho de Guimarães, duas do Concelho de Felgueiras e outras duas do Concelho de Lousada) e satisfazendo os profundos anseios das respectivas populações que, com a elevação a concelho da sua populosa região (mais de 40 mil habitantes), passarão a dispor de instrumentos de desenvolvimento e de utilidade pública impossíveis de alcançar na situação de tutela autárquica em que se encontram.

O que Magalhães e seus pares não dizem é que a elevação de Vizela a concelho em nada prejudica qualquer dos municípios administrantes, pois à ausência de dotações orçamentais até agora recebidas em função dessas freguesias, corresponderá uma total ausência de encargos com elas.

Em contrapartida, as freguesias do futuro Concelho de Vizela passarão a dispor, pelo simples facto de serem concelho, de muito mais verbas, meios e autonomia para tratarem dos seus interesses.

O que Magalhães e seus pares também não confessam é que a autonomia autárquica de Vizela apenas pode afectar os caciquismos em que navegam e os negócios privados que por trás se escondem.

Assim, neste caso bem pode o PS devolver ao correligionário Magalhães e seus pares, se não a acusação de «mudos» - inaplicável em tal chinfrineira -, pelo menos os mimosos epítetos de «surdos e tontos».Henrique Custódio


«Avante!» Nº 1268 - 19.Março.98