AMI - o rolo compressor do liberalismo

Entrevista com Aline Pailler e Sérgio Ribeiro
conduzida por Daniel Rosário


O Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI) continua envolto numa aura de mistério, que lhe foi conferido pelo secretismo em que decorreram as negociações que o moldaram. Mas essa aura de mistério dissipa-se lentamente para dar lugar à estupefacção e reacção contra a filosofia que lhe está subjacente e o alcance nocivo das suas medidas.

Cerca de quatro meses após o grito de alerta lançado em Paris pelos meios culturais franceses e o eco feito pelo PCP, em Portugal, com o pedido de realização de um debate na Assembleia da República, a discussão chegou ao Parlamento Europeu (PE).

Esta conversa decorreu no dia em que o PE votou uma resolução apelando à não assinatura do AMI. Uma jornalista e um economista, com a característica de partilharem interesses literários e políticos, num encontro em que cada um abordou o AMI pelo lado que lhe era mais próximo.

— Como é que a existência das negociações deste Acordo se torna pública e começam todas as movimentações?

Aline Pailler — Tal como a maioria das pessoas, eu fui alertada em 1996, após a publicação de um artigo no Figaro, que dizia que o governo francês, na época estava Juppé no governo, negociava o Acordo Internacional AMI. Era a primeira vez que ouvíamos falar em tal coisa e, face aos perigos que se esboçavam, começámos a recolher informação. Logo de seguida reagiram os meios culturais, que se encontravam mobilizados para este tipo de coisa desde as negociações do GATT, ao aperceberem-se de que este acordo iria pôr em causa os direitos de autor, a propriedade intelectual, a chamada "excepção cultural".
Trabalhou-se com juristas, começou-se a alertar as pessoas. Por seu lado, as sociedades de autores e principalmente os cineastas estão verdadeiramente mobilizados a fazer apelos sobre as consequências do AMI para a cultura, mas também para avisar dos perigos para os direitos sociais e ambientais. Paralelamente, o Observatório da Mundialização, que envolve muitos dos nomes que escrevem no Monde Diplomatique, organizou uma conferência no Senado em Dezembro de 1997, para a qual convidaram Jack Lang, que é presidente da comissão dos negócio estrangeiros da Assembleia Nacional francesa. É neste dia que Lang descobre tudo, pois ele não conhecia absolutamente nada. E foi nesta altura que se desencadeou a grande reacção em todos os meios de comunicação social, com toda a gente a perguntar-se sobre o que é que se estava a passar.
O ministro da economia, que negoceia o Acordo com os seus funcionários, disse ao início que não era perigoso, que não havia problema. Quando o primeiro ministro Lionel Jospin viu esta movimentação exigiu um inquérito em todos os serviços para saber as consequências do AMI em cada ministério. Isto foi há dois meses. É extraordinário, pois ninguém, à parte o ministro da economia tinha conhecimento. E hoje ele recua.
O cúmulo do secretismo atingiu-se há cerca de um mês, quando o ministro francês do interior, aquando da conferência de imprensa de 10 de fevereiro dos cineastas, não conhecia o documento. Ele pediu à Sociedade de Realizadores de Filmes (SRF) que lhe enviassem o projecto por fax. Mas ainda são 200 páginas! E a SRF disse que não o podia fazer. Então ele enviou um estafeta para ir buscar o documento. O ministro do interior do actual governo não sabia nada!

Sérgio RibeiroQueria acrescentar uma coisa ao que a Aline disse a propósito do início do movimento contra o AMI. Há uma outra fonte neste movimento, que são os países periféricos da OCDE, como a Austrália, Nova Zelândia e Canadá. Não tanto a um nível cultural, como em França, mas a nível económico, enquanto países da periferia que se sentiam arrastados por este processo. Isto deu origem a um movimento de grande importância que converge, aqui no "centro", com o que se passa em França e que parte de um governo, e sobretudo dos intelectuais e de meios artísticos, o que me parece importante.

— E em Portugal o primeiro ministro e seus colegas de governo estão ao corrente do que se passa?

SRAcho que pelo menos agora deve estar. Não sei se estava há umas semanas, mas agora de certeza que sim, pois fizemos muito barulho em Portugal. Penso que também tivemos reacções muito importantes por parte de alguns intelectuais, como o artigo de José Saramago, além de outras coisas que começam a fazer-se notar, mas sem a amplitude que houve em França. Há ainda movimentação no seio da Assembleia da República, há movimento com expressão um pouco por toda a parte.


— Acham que eles adoptaram este "low profile" por acharem ser um assunto essencialmente técnico, e que não valia apena incomodar as pessoas?

AP Há aqui duas coisas. Não sei como é em Portugal, mas em França e noutros países europeus há um mau hábito de deixar aos peritos, sejam funcionários de ministérios seja gente do exterior, a preparação da negociação. E dá-se-lhes confiança porque somos incompetentes, ou porque não temos tempo, mas por mil razões acabamos por lhes confiar. Ora estes peritos são sempre os mesmos. No governo francês são os mesmo que negociaram pelos governos de direita. Mas não podemos ter uma sociedade democrática que se baseie apenas no parecer de peritos, que não são eleitos, a quem nem sequer conhecemos o nome, e a quem não são pedidas contas. Isto é uma primeira razão. A segunda razão é para mim a mais grave. Ideologicamente penso que o ministério da economia, independentemente do ministro e do governo, é um ministério que está numa passada liberal, que não a põe em causa e a defende. Acho que isto é uma vitória ideológica do liberalismo.


— O que achas das razões apresentadas pela Aline?

SR Há muitas razões. Por exemplo, porque é que o AMI não foi negociado no seio da OMC, como se pensou inicialmente? Porque no interior da OMC há cento e tal países, os quais poderiam levantar problemas, nomeadamente os do chamado Terceiro Mundo. Enquanto que se isso for feito apenas ao nível da OCDE, que tem vinte e nove países, que são os países mais desenvolvidos, a coisa é mais pacífica. Outro aspecto que também me parece importante é que na redacção das negociações não estão simples peritos. São peritos com ligações e relações com os grupos e empresas transnacionais. Outra coisa ainda é o papel da Comissão Europeia. A Comissão é um orgão muito importante em toda esta política. Há um grupo de comissários que está por detrás de todos este movimentos, gente que salta das transnacionais para a Comissão Europeia, da Comissão Europeia para as transnacionais, fazendo a ponte. Atrás da Comissão está o G-7, o G-8, ou sei lá o quê, há os grupos transnacionais e o capital transnacional com toda a sua influência. Em Portugal, aplica-se o mesmo que a Aline disse sobre os responsáveis pelas negociações. São peritos e técnicos, com uma ideologia ultraliberal, integrados nos ministérios das finanças e da economia que estão totalmente de acordo com isto tudo.


— Porque é que os meios culturais reagiram com tanta força?

AP Basta olhar para as consequências deste acordo para a cultura. No AMI é recusado tudo o que possa aparecer como uma barreira ao investidor. O direito de autor, por exemplo, confere ao autor, seja de um filme, de uma escultura ou de um texto, direitos económicos que lhe permitem obter dinheiro com as suas obras. Mas também lhe dá um direito moral muito forte que estabelecerá que um filme seu, por exemplo, não seja aproveitado para fins publicitários, e que ele pode preferir que o mesmo não seja difundido. Ou que a sua obra não possa ser exposta em tal exposição, etc. Isto é, cabe sempre ao autor a última palavra em relação à utilização de um trabalho seu. Para o AMI uma obra de arte também é um investimento, o que significa que um autor não pode vir dizer que não quer que a sua música seja tocada em determinada manifestação política. Isto é uma barreira ao investidor pois ele não vai poder obter dinheiro proveniente do investimento que fez na obra de arte, o que significa que o produtor, aquele que paga, teria todos os direitos.
E o mesmo aconteceria com o nosso sistema de apoio ao cinema, que faz com que ele ainda exista e que ajuda outras cinematografias, como a africana, a portuguesa e até mesmo filmes independentes americanos. Este sistema de ajudas passará a ser considerado ou como um entrave, e acabam as ajudas, ou então, todas as ajudas atribuidas a filmes franceses e africanos devem ser feitas à mesma escala a um filme de Hollywood que, a priori, não precisa desta ajuda.
Deixa-se de poder optar por uma determinada cinematografia, nacional ou de países com dificuldades e tem que se dar estas vantagens a todos os filmes. O que significa o fim da ajuda do cinema europeu, a morte do cinema europeu em proveito do cinema de Hollywood.

— As consequências do AMI não são apenas "culturais"...

SR De forma alguma. O que eu penso do que a Aline acaba de dizer é que se pode reduzir tudo a uma perspectiva: toda e qualquer produção resulta de investimentos e todo o produto é considerado mercadoria. Seja qual for o produto, seja qual for a produção. Isto pode resumir as coisas. Qualquer produção, seja ela de batatas, estaleiros navais, armas, livros ou filmes é produção resultante de um investimento e tudo passa a ser tratado no mesmo plano, sem qualquer diferença. Esta é a filosofia que está por detrás de tudo isto. Quando digo que o problema não se refere apenas aos produtos culturais é porque há outros produtos que não são culturais, também muito importantes para a sociedade, ligados à saúde, à educação e a outros aspectos essenciais da vida das pessoas que passam a ser tratados como mercadorias, como fruto de investimentos. Quem quiser saúde tem que pagar, é o resultado lógico desta filosofia. Não são direitos, não temos direito à cultura, nem à educação, nem à saúde, teremos o acesso caso tenhamos os meios para adquirir os produtos em causa, que são meras mercadorias. É esta a filosofia que está por detrás do AMI.
O interessante é que quando esta filosofia atinge os meios culturais e artísticos há uma reacção muito importante para o denunciar. No entanto, não devemos lutar apenas por excepções culturais, devemos lutar contra esta filosofia, esta lógica.


— Este acordo tem a particularidade, em coerência, aliás, com a sua filosofia de "primado do investimento" de considerar legislações existentes de carácter social ou ambiental como "obstáculos". O que acontecerá a estas coisas?

AP Se o acordo for assinado, desde que haja "obstáculos", o investidor poderá processar um Estado. Por exemplo, em países com zonas de elevado desemprego, os Estados por vezes impõem como condição à instalação de uma empresa que empregue uma determinada percentagem de jovens dessa área. Agora, o Estado ou deixa de fazer isso, ou a empresa terá o direito de exigir um reembolso, pois as exigências do Estado serão encaradas como um obstáculo. O mesmo, naturalmente, no caso de haver greves. Tudo com o argumento de que se "perderam lucros"...
Por outro lado, os serviços públicos poderão ser considerados como um entrave, pois uma vez que têm uma "missão" pela qual recebem vantagens, as outras empresas terão direito a exigir as mesmas vantagens. Mas não se pede nada em troca. É verdade que as empresas públicas usufruem de benefícios. Mas é precisamente por serem públicas, ou seja, exige-se-lhes uma contrapartida, que prestem um serviço público. Aqui não.
Na História há queixas de Estados contra Estados, mas aqui serão empresas privadas que poderão levar os Estados à justiça. Está previsto no texto do AMI que um investidor possa processar o Estado, que um Estado possa processar outro, mas em caso algum um Estado poderá processar um investidor. É, no mínimo, extravagante.

SR No AMI, as únicas situações em que o Estado pode colocar obstáculos é no caso de haver problemas de ordem pública. Há também aqui uma parte ideológica muito importante. Se há uma manifestação, o Estado pode intervir por forma a restabelecer a ordem pública e, aí sim, pode ter o aspecto repressor, enquanto o capital financeiro se põe de lado. Aqui o Estado é chamado a cumprir o seu dever. Fica-lhe reservado o papel de polícia do capital financeiro que se encontra em livre circulação. Se há problemas, o capital pode suspender a sua circulação para dizer ao governo que restabeleça a ordem pública.

AP Como para as florestas. Presumo que em Portugal, como um pouco por toda a parte, não se possa fazer o que se quer das árvores, pois há que proteger a floresta, ainda que a maior parte das vezes isso fique por fazer. Agora, caso os investidores comprem florestas, não se lhes pode dizer que não façam determinadas coisas em nome da defesa do ambiente. Eles explorarão o sub-solo, tudo o que quiserem, poderão transformar tudo num deserto e depois vão-se embora, como aconteceu no Chile com os investidores americanos que devoraram todo o capital natural do país deixando tudo entregue à poluição.

— Face ao secretismo, qual a importância da decisão tomada hoje pelo PE?

AP É importante, pois é um sinal de força, mas ao mesmo tempo é preciso reparar que a resolução não critica o fundo, fica-se pela forma. Critica-se fortemente a tentativa de suprimir a possibilidade dos Estados e dos cidadãos de controlar estes acordos, mas não se rejeita liminarmente o AMI. Mas já é importante que se apele à suspensão das negociações e se exija a colocação do debate em cima da mesa. Mas também acredito que se o PE chegar a pronunciar-se sobre o fundo do debate já não haja uma maioria tão grande. Mas isto é de grande importância, principalmente em relação à Comissão, dizendo-lhes que não podem fazer o que lhes apeteça nas costas dos Estados, dos políticos e dos cidadãos.

SR Parece-me uma decisão muito importante, pois dá uma dimensão institucional a uma reacção muito forte e se tivermos em conta a composição do PE ainda é mais positiva. Assim como foi positivo o apoio dado à emenda do nosso Grupo sobre a moratória, apesar de não ter sido suficiente para a aprovar. Além de que se dá um sinal a outros parlamentos e a outras instâncias. Creio mesmo que, a nível institucional, é a primeira grande tomada de posição contra o AMI. Há efectivamente um movimento muito importante, que não se deve ficar pelas pequenas vitórias, que deve ir mais longe, na denúncia de tudo o que está implícito neste processo e ir ao fundo dos problemas.


— E contra tudo isto?

AP - É a resistência dos povos esclarecendo, informando, com os sindicatos, as associações, as organizações não-governamentais, os partidos políticos. E chegará um dia em que toda a gente terá que se definir sobre de que lado está e muitos terão que voltar a questões em nada ultrapassadas como a luta de classes, ou o interesse do capital. Tenho muita pena, podem dar-lhe todos os nomes que quiserem mas as coisas são assim. É preciso que os cidadãos não confiem cegamente. É preciso denunciar, debater, é preciso fazer política, praticar a cidadania activa.

SRCada dia que passa ganhamos e perdemos. O que é preciso saber é em que condições é que temos que fazer a luta. E a Aline disse uma coisa que é muito importante, que é que isto se liga à luta de classes, sem nenhuma dúvida. Luta de classes que ganhou uma dimensão que ultrapassa as formas antigas. O que quero dizer com isto é que o capital assumiu uma mobilidade, uma capacidade de explorar não importa onde e que nós devemos manter e reforçar a luta onde ela se faz, mas é preciso também ver que temos que conduzir esta luta para outros níveis. E quando a Aline diz que é necessário reflectir e discutir, estou de acordo, fazendo a ponte para toda a gente, porque não poderemos ganhar esta luta no dia-a-dia se não formos capazes de mobilizar os trabalhadores, as pessoas, os povos. Pode até ser perigoso pensar que podemos lutar e ganhar uma batalha ideológica ao nível das ideias. É preciso ter sempre presente esta ligação entre os intelectuais, os artistas, quando são tocados pelo AMI, e as pessoas que são as verdadeiras vítimas de tudo isto, os trabalhadores, os desempregados. E temos de ter capacidade de os mobilizar para esta luta.
No mesmo dia em que o Parlamento Europeu votou a referida resolução condenando a forma como foram seguidas as negociações sobre o AMI, a Comissão Europeia comunicou, no decorrer de uma conferência de imprensa nas instalações do próprio Parlamento, o desencadear do processo de negociação de um acordo bilateral entre a UE e os Estados Unidos. O acordo em causa, New Transatlantic Marketplace (NTM), pretende abolir as chamadas "barreiras comerciais" existentes entre estes dois parceiros.


— Como é que o AMI se articula com o NTM?

AP Isto é muito inquietante. No debate de ontem sobre o AMI havia no PE uma grande maioria de deputados a dizer ao comissário Leon Brittan que era preciso parar com este tipo de coisa. Hoje, no dia imediatamente a seguir, o mesmo Leon Brittan e o comissário Bangemann fazem uma conferência de imprensa aqui, no PE, para anunciar que fizeram adoptar, sem votação, ou seja, com o acordo unânime dos demais comissários, o projecto NTM, um tratado que prevê a liberalização dos mercados públicos, dos serviços de todas as barreiras aduaneiras em relação aos investimentos, como no AMI, mais a propriedade intelectual. Dizem que, por enquanto, deixam a agricultura e o audiovisual de lado, mas que a prazo o objectivo é a eliminação total de barreiras, criando um mercado livre. É uma proposta que apresentamos aos americanos que já tem em consideração os seus interesses. Agora a Europa está à espera de uma contra-proposta dos americanos para poder negociar. Quer dizer que partimos de uma posição de inferioridade e arriscamos vir a ter também aqui uma zona de livre comércio que se impõe a todos os países que entrem para a UE.
Isto é um pequeno passo para o AMI e na óptica das futuras negociações no seio da OMC o NTM já está preparado entre a Europa e os EUA. Quando eles chegarem à OMC já haverá um acordo entre os EUA e os 15 países da UE. Está-se mesmo a ver o peso dos outros países para se oporem a isto...
É preciso agir desde já sobre os governos, pois este projecto vai agora ser entregue ao Conselho de Ministros da UE. Ainda não apagámos o fogo do AMI já outro está a arder.

SR O que prova que só podemos contar connosco mesmo, que não podemos abandonar a pressão. Outra coisa que ainda não foi bem evidenciada é o papel dos EUA em todo este processo. A OCDE é uma organização em que os EUA são predominantes, foi a partir da OCDE e da estrutura que lhe antecedeu que foi criado o mercado comum. É necessário recuar mais de 40 anos para se perceber como tudo isto é um percurso, com o seus acidentes, mas que tem vindo a arrasar tudo o que se lhe opõe. E o que é que se pode opor a isto? A informação, o aclarar dos objectivos, a luta das pessoas, dos eleitos, do povo. Senão isto será um autêntico rolo compressor. E a conduzir este rolo vemos os EUA, as grandes empresas, os grupos transnacionais e organismos como a Comissão Europeia, que de um lado diz estar a construir a Europa, mas do outro cria condições para que a Europa se apague num mundo do capitalismo financeiro sem fronteiras.


«Avante!» Nº 1269 - 26.Março.98