A TALHE DE FOICE

A morte à solta


O brutal acidente que esta semana matou mais seis pessoas no Itinerário Principal N.º 5 – a sinistra IP-5 que liga Aveiro a Vilar Formoso – teve, como todas as tragédias de grande dimensão, o efeito de concitar as atenções do País e produzir promessas governamentais tão repetidas como os próprios acidentes. Lá soubemos, mais uma vez, que o IP-5 iria ser remodelado, que a solução estará na duplicação das vias, etc., etc.. Entretanto, as mortes continuam.

O IP-5 é um caso paradigmático no já de si tenebroso panorama rodoviário nacional, onde detemos o recorde comunitário em mortes e acidentes.
Inaugurado ainda por Mário Soares quando Primeiro-Ministro, faz parte da «febre das auto-estradas» com que se procurou afanosamente abrir caminho à «Europa connosco». Mal projectada e pior construída, esta via rápida cedo se configurou uma ameaça pública de dimensão nacional, como brutalmente o comprovam as mais de 200 vítimas que ali perderam a vida, só nos últimos cinco anos.
As sucessivas tragédias despertaram a atenção dos órgãos de Comunicação Social, tendo sido através de reportagens que o País foi tomando consciência da mortífera armadilha que tinha sido montada a toda a largura do território continental: asfalto inadequado para uma estrada de montanha, curvas mal concebidas, declives excessivos, inclinações erradas, acessos sem visibilidade, impermeabilização e falta de escoamento pluvial, sinalizações incorrectas, piso deformado, tudo se concentrou nesta fatídica «via rápida», como se o objectivo fosse nela exemplificar o que de errado se pode fazer em matéria de construção de estradas modernas.

A monstruosidade atingiu tais proporções, que as suas bermas se transformaram num macabro cemitério de destroços, a cada um correspondendo uma ou mais vidas ceifadas no local.

Apesar de factos tão brutais e dos desesperados relatórios da Brigada de Trânsito da GNR, os diversos poderes públicos com responsabilidades directas nas estruturas viárias pouco ou nada fizeram para enfrentar o problema, enquanto sucessivos Governos foram torneando a questão com mais auto-estradas atamancadas, sem rigor nem controle mas óptimas para inaugurações e vitórias eleitorais.

Resulta disto uma coisa espantosa: os sucessivos governantes deste País, sendo tão atreitos à defesa da vida humana no éter dos princípios, conseguem permanecer tranquilamente indiferentes a uma chacina que há anos ocorre à vista de toda a gente, ao ritmo de dezenas de mortos por ano...

Não chega dizer que há muita incompetência, desrespeito e imprudência nas estradas portuguesas. É verdade que há tudo isso (a que, aliás, o Governo em Portugal continua a não pôr cobro com a legislação, o investimento, as medidas e os meios disciplinadores adequados), mas também há obras criminosas como a do IP-5, cuja construção ninguém controlou como devia e, pior que isso, a que não se pôs rapidamente travão através do reordenamento da via, muito mais urgente e importante que lançar mais uns quilómetros de auto-estrada de duvidosa qualidade.

Neste quadro, não surpreende que se tenha descoberto, com este acidente, que a maioria dos postos telefónicos SOS colocados no IP-5 estivessem inoperacionais, tal como se tornou «lógica» a extraordinária facilidade com que a Junta Autónoma das Estradas se livrou da responsabilidade, atribuindo-a à empresa estrangeira que contratou para a manutenção desses equipamentos.

Num tempo em que as preocupações com o colectivo não passam de retórica para ganhar votos e conquistar o poder, a responsabilidade é infalivelmente «dos outros».

A quem, aliás, nunca se pede contas: tal como «os outros» de hoje já foram os «nós» de ontem, os «nós» de hoje hão-de fatalmente ser «os outros» de amanhã. E isto é tudo boa gente...— Henrique Custódio


«Avante!» Nº 1269 - 26.Março.98