A ameaça nuclear


No auge da mais recente crise entre EUA e Iraque, o Presidente do Parlamento russo advertia que o mundo estava perante o perigo dum conflito que poderia alastrar para além do território iraquiano e transformar-se em conflito nuclear. O Presidente russo Ieltsine, que foi o candidato de todos os "ocidentais" (em particular dos americanos) nas presidenciais do ano passado, falou do perigo duma Terceira Guerra Mundial em caso de agressão americana. A muitos portugueses (e não só) as afirmações terão parecido exageradas e até ameaçadoras. Mas a ameaça americana não é uma ficção.

A conceituada revista norte-americana The Nation escrevia em editorial (2.3.98): «Algo de alarmante insinuou-se na retórica cada vez mais belicista sobre Bagdade – a discussão aberta de um ataque nuclear norte-americano. Sabemos agora que os Estados Unidos consideraram a hipótese de um ataque nuclear durante a Guerra do Golfo. Como disse ao National Press Club no dia 2 de Fevereiro o General George Lee Butler, ex-Comandante do Comando Estratégico dos EUA: "No próprio cerne das considerações [durante a Guerra do Golfo] estava a possibilidade de utilizar armas nucleares". A consideração desta hipótese foi um segredo bem guardado aos mais altos níveis do Pentágono e da Casa Branca. Mas, desta vez, já se ouvem vozes destacadas da máquina de segurança nacional e da `peritocracia´ dizer: "esmaguemo-los com armas nucleares". A nova directiva sobre política nuclear dos Estados Unidos, divulgada em Dezembro, autoriza explicitamente um ataque nuclear contra um chamado Estado marginal [rogue state em inglês] – numa mudança significativa em relação à política anterior. No dia 3 de Fevereiro, o General Eugene Habiger, que detém hoje o cargo que fôra de Butler, afirmou ao Omaha World-Herald que o Comando Estratégico está em condições de auxiliar a preparar um plano de ataque nuclear contra Saddam Hussein. Respondendo às declarações de Ieltsine, o porta-voz do Departamento de Estado, James Rubin, negou em 5 de Fevereiro que houvesse actualmente planos para um ataque nuclear contra o Iraque, mas logo de seguida acrescentou agoirentamente: "não rejeitamos à partida qualquer potencial que esteja ao nosso dispôr". Rubin aludiu a uma resposta nuclear "no caso de os EUA, os nossos aliados e as nossas forças serem atacadas com armas químicas ou biológicas". No The New York Times de 2 de Fevereiro, William Safire defendeu que qualquer "acção bacteriológica" por parte do Iraque seria "um convite" a uma resposta nuclear».

Para enquadrar devidamente estas afirmações, convém não esquecer que a História regista dois casos de utilização efectiva de armas nucleares. Ambas foram ataques a cidades, não a alvos militares. Ambas foram obra do governo dos EUA. Nenhum dos criminosos de guerra responsáveis pelas muitas dezenas de milhar de vítimas nucleares foi alguma vez levado ao Tribunal da Haia (agora tão em voga), ou a qualquer outro. Nunca os EUA pediram desculpa à Humanidade, ou sequer às populações de Hiroshima e Nagasaqui, por estes crimes maiores da História humana. Pelo contrário. Ao passarem 50 anos sobre os massacres nucleares, um jornalista perguntou ao actual Presidente dos EUA, William Clinton: "Devemos pedir desculpas? E será que o Presidente Truman tomou a decisão correcta ao lançar as bombas ?" As respostas de Clinton foram liminares: "Não. E com base nos factos de que tinha conhecimento, sim" (Remarks by the President to the American Society of Newspaper Editors, 7 de Abril, 1995). Rezam as actas desse encontro que os directores de jornais que escutavam o Presidente aplaudiram a resposta. O que contribui para esclarecer o silêncio quase universal que rodeou as sinistras declarações recentes dos amantes das armas nucleares. A "aldeia global" tem dono, e dono que toma partido. Pelo Império.

O Dr. Estranhamor de Stanley Kubrick continua bem vivo, no Pentágono e na Casa Branca. E o campeão dos rogue States é a super-potência mundial. Que continua a querer impôr o seu domínio universal, se "necessário" for, pela via nuclear. O perigo maior será o de ignorar, ou subestimar, esta realidade. — Jorge Cadima


«Avante!» Nº 1269 - 26.Março.98