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O desmentido

Por Correia da Fonseca


Há coisas que aborrecem um homem. Por exemplo: a mim, e decerto a muitos outros em condições idênticas, aborrece ter andado a descontar para a chamada Segurança Social desde a adolescência, o que perfaz mais de quarenta anos bem contados, e ao fim de todo este tempo andar constantemente a ouvir que a minha reforma está a ser paga com os descontos dos meus filhos, isto é, das gerações seguintes. Quando o oiço, confesso, sinto-me vagamente humilhado, assim como quem é surpreendido a comer de prato alheio, e, para mais, quase me vejo impossibilitado de indignar-me quando sinto que parte do segmento activo da população está desejando, com intensidade variável, que os velhos morram depressa para que assim termine o fardo que os ainda não velhos andam a carregar.

Pergunto-me, então: o que foi feito do dinheiro que durante quatro décadas e tanto foi retirado dos meus salários e que, pelos vistos, se volatilizou ou partiu para parte incerta? Admito que a pergunta seja ingénua e para ela haja respostas técnicas, seguras e sábias, mas o que receio é que não me sejam convincentes. Explicam-me, designadamente, que o actual sistema de Segurança Social é distributivo e não de capitalização, mas o caso é que a explicação parece-me passar ao lado do actual paradeiro dos meus descontos.
Inevitavelmente, desponta uma suspeita: querem ver que lhes deram mau caminho, que os gastaram onde não deviam, quem sabe se em guerras coloniais ou em hidroelectrificações que deviam ter sido financiadas de outro modo? Querem ver que há aqui mais uma grave maldade do fascismo que hoje quase todos esqueceram e ninguém lembra?


O rigor dos números

Vem isto a propósito da última emissão da rubrica «Maria Elisa», por sinal a que imediatamente se seguiu à nomeação da própria Maria Elisa para a Direcção de Programas da RTP. A circunstância foi de bom agouro porque o tema da emissão foi a Segurança Social, assunto de interesse verdadeiramente geral e, por isso mesmo, rigorosamente vocacionado para um canal generalista, ao contrário do curioso entendimento que supõe que só os programas pueris, se não imbecis, estão certos nos canais ditos generalistas. Para mais, a emissão decorreu muito bem e foi conduzida com a serenidade e a isenção que ultimamente tem sido um dos factores de distinção entre Maria Elisa e Margarida Marante. Até lá esteve uma voz da CGTP, na intervenção de Eugénio Rosa, e foi um regalo assistir a como ele escavacou, com o rigor dos números, os argumentos em favor das alegadas vantagens de transferência para o sector privado da parte mais interessante, no plano negocista, do seguro social.

Também o depoimento de Boaventura Sousa Santos foi precioso ao esclarecer certos pontos. Lembrou ele que, segundo dados do mais importante banco alimentar dos Estados Unidos, 10% dos norte-americanos têm de recorrer diariamente à chamada sopa dos pobres, o que ilumina surpreendentemente as maravilhas do desenvolvimento capitalista. Lembrou também que 5% da população portuguesa embolsa 35% do rendimento nacional; que mais de 90% dos portugueses recebem mensalmente um valor situado entre a pensão mínima e o salário mínimo, que 27% se encontra abaixo do limiar que define a situação de pobreza. Poderá alegar-se que estes dados já eram conhecidos por alguns, mas a questão é que desta vez foram divulgados no canal principal da RTP e que na TV, mesmo um programa de fraca audiência média (digamos cerca de 5%) é visto por meio milhão de pessoas, isto é, por uma multidão capaz de encher cinco estádios da Luz a abarrotar.

O mais importante de tudo, porém, terá sido o cabal desmentido que o programa constituiu relativamente à atoarda, verdadeiramente sinistra, em tempos posta a circular quanto à falência, anunciada como inevitável e próxima, da Segurança Social. Injectada na opinião pública por círculos próximos dos lobbies financeiros e do próprio governo PSD, convenceu muitos, entre os que trabalham e dispendem «muita força por pouco dinheiro» como cantou o Sérgio Godinho, de que estavam condenados a uma velhice de total miséria porque o Estado não iria ter dinheiro nem mesmo para lhes pagar as reformas minúsculas que lhes estavam prometidas. É certo que a impostura já havia sido desmentida por fontes oficiais em datas mais recentes; mas neste «Maria Elisa» o desmentido foi unânime e categórico, assumido até pelos que eram ali porta-vozes do pensamento de direita na matéria em debate. Terá sido para muitas angústias o tempo de alguma tranquilidade. Bem se pode dizer que uma emissão como esta é verdadeiramente de serviço público.


«Avante!» Nº 1269 - 26.Março.98