Argélia
Um jovem país em busca da modernidade

Por Abdelalim Medjaoui
Ex-jornalista do «Alger Republicain»


Determinada a percorrer os trilhos do desenvolvimento e a construir uma sociedade democrática e moderna, a Argélia não abdica da sua independência e soberania, conquistas que tantas vidas custaram no passado e continuam a custar no presente. Nesta edição, o «Avante!» publica um artigo de Abdelalim Medjaoui, antigo jornalista do Alger Republicain, que lança um olhar empenhado e militante sobre alguns dos principais temas da história e da actualidade argelinas.

A sociedade argelina atravessa um período difícil da sua evolução marcado pelo surgimento do fenómeno do terrorismo incrivelmente selvagem que continua enlutar o país. Nunca pensámos que um tal fenómeno pudesse aparecer e desenvolver-se na nossa querida pátria, a qual depois de tanto ter sofrido durante a longa guerra de libertação pensávamos que só poderia aspirar à paz e à estabilidade. Como chegámos a esta situação?
Para responder a esta questão é necessário recuarmos um pouco atrás, à independência. Passados os primeiros anos de alguma estabilidade do poder saído da guerra de libertação, lançámo-nos numa eufórica acção de modernização da sociedade, numa marcha forçada com vista à revolução e construção socialistas. À escala mundial as forças do progresso iam de vento em popa e a nossa luta de libertação tinha dado um grande contributo para isso ao desferir um golpe fatal sobre o sistema colonial francês. Sobreveio o trágico desaparecimento do presidente Houari Boumédiène, num momento em que a construção socialista mundial começava a abrir fendas. À cabeça do Estado colocámos um «rei preguiçoso», como lhe chamou um diplomata francês ... (mas) já depois da sua queda, porque durante o seu «reinado» era reputado de «sábio e ponderado» (Miterrand dixit).
A gestão de Chadli quase que foi fatal à jovem república e ao jovem Estado constituído em pouco mais de uma década à custa unicamente de dificuldades inauditas. Reflictamos um pouco:
No momento da partida dos franceses, em 1962, já não havia nenhuma administração do Estado. O número de quadros existente para substituir os funcionários franceses era ridículo face às necessidades. Mesmo os quadros que existiam não tinham a formação exigida e este facto vai pesar muito sobre a competência e o espírito dos agentes do novo Estado. Para além de que os argelinos não tinham um Estado nacional desde a queda do Estado argelo-turco, em 1830, apesar dos esforços do grande resistente Emir Abdelqader para construir naquela época um Estado nacional.
Apesar de tudo, depois de uma década, a instalação do Estado moderno argelino teve resultados apreciáveis. No plano interno, este Estado conduziu a passo acelerado a modernização da sociedade: lançou a escola argelina que não tardou em dar um número importante de quadros válidos; uma economia nacional na base de um capital nacional consequente, que teve repercussões sócio-culturais importantes como a electrificação do país, que abrangeu mesmo as povoações montanhosas; uma rede importante de abastecimento de água e uma outra de gás de cidade. Tudo isso apesar de um êxodo rural maciço e uma explosão demográfica acentuada que triplicou a população do país.
No plano externo, o respeito conquistado pela revolução argelina durante a guerra de libertação seria reforçado após a independência não apenas pelos progressos realizados na construção interna, mas igualmente pelo lugar que a Argélia ocupava na luta pela emancipação dos povos, pela exploração própria das riquezas nacionais, pelo apoio às causas justas no mundo, nomeadamente as dos povos dominados pelo colonialismo português e pelo regime fascista de Portugal, assim como a do próprio povo português e a sua revolução dos cravos.


O reforço do islamismo

Tudo isto ia sendo gravemente ameaçado pela gestão catastrófica de Chadli e sua equipa que minou do interior a organização do Estado e a sua autoridade. Chadli considerava-se um monarca e acreditava poder utilizar o seu cargo à semelhança dos outros países autocráticos, em particular árabes e muçulmanos. Muito rapidamente, não apenas as leis foram espezinhadas, o que encorajou o incivismo e a tendência para a anarquia e o caos que aproveitava às forças mais atrasadas, até aqui mantidas em respeito por um Estado moderno e pelas suas leis; mas sobretudo a orientação moderna e progressista que presidia até então aos destinos do país foi posta em causa; para além de que os revezes do socialismo no mundo e o recuo das forças que o proclamavam afectaram esta orientação moderna e a debilitaram ainda mais, num quadro de uma campanha ideológica odiosa e revanchista das forças do capitalismo mundial.
O nosso povo e o nosso jovem Estado não podiam deixar apodrecer as coisas e revoltaram-se contra Chadli e a sua gestão. Mas, tal como sucedera no Irão noutras circunstâncias, as forças retrógradas escudadas na religião decidiram apoderar-se deste movimento de revolta, encorajados por um chefe de Estado renegado e pelo seu partido único caídos em descrédito, pensando que a coligação com os islamitas lhes permitiria recuperar a liderança. Organizaram-se as eleições alegadamente pluralistas que deram uma maioria à coligação Islamitas-FLN de Chadli, na qual se integrou um antigo chefe revanchista da revolução que se apoiava numa tendência isolacionista regional. Tratava-se da Frente das Forças Socialistas que pensava poder negociar o seu apoio à coligação em troca de uma atitude mais aberta do Estado face às tendências isolacionistas que estimulava na Kabília sob a autoridade de Aït Ahmed (este último integrou-se também na Internacional Socialista para assegurar um apoio internacional: assim se explicam as posições da esquerda socialista francesa, e mesmo europeia, perante o drama que abalou o nosso país, e a apreciação que sobre ele veiculou).
Chadli apresentou assim a sua demissão e as eleições foram postas em causa... Os islamitas clamavam contra a ditadura, eles que durante longos meses declararam o seu ódio à democracia, e ameaçaram os argelinos acusando-os de não seguirem o «verdadeiro» islão. Por intermédio de Rabah Kebir, na televisão nacional, intimaram-nos a mudar os hábitos indumentários e outros...
Tinham entretanto organizado campos de treino militar por todo o país e começado a instalar as suas infra-estruturas guerrilheiras logo que conquistaram os municípios depois das eleições locais, onde empregaram todo o aparelho coercivo sobre os eleitores, sob o olhar vigilante do poder de Chadli.
Para além dos explosivos roubados – também aqui com facilidade – nas carreiras e estaleiros públicos onde estes materiais eram utilizados, assaltaram uma caserna na fronteira entra a Argélia e a Líbia, onde, depois de uma matança inqualificável de jovens recrutas, roubaram as armas ... tudo isto muito antes das famosas eleições legislativas.
Estas actividades subversivas, largamente conhecidas não só da opinião pública argelina como também opinião pública internacional, não pesaram muito junto dos censores que condenaram a suspensão do processo eleitoral. Mitterrand voltou a clamar: «é preciso retomar o processo eleitoral..», em apoio do seu amigo Chadli.
Perante a interdição da FIS, depois desta ter organizado uma greve insurreccional, a França abriu largamente as portas do «asilo político» aos islamitas que se deram ao luxo de venderem os seus cartões de militantes por elevadas somas de dinheiro, obtendo assim com a maior das facilidades um visto de entrada e asilo em França... A Alemanha, Inglaterra e outros países tomaram medidas análogas para «salvar os pobres islamitas atormentados pela selvática repressão do poder militar da Argélia!».


A retoma da confiança

Mas a Argélia moderna, cujas forças progressistas ficaram atordoadas pelo caminho que tomaram o pluralismo e a democracia, pelos quais elas tão longamente lutaram e que agora viam ser desvirtuados – retomam pouco a pouco confiança com o regresso da criança prodígio, o admirável Mohamed Boudiaf. Apesar do assassinato deste, as forças progressistas reforçam o Estado e a sua presença no terreno, e em condições difíceis de confusão política e isolamento internacional, lançam-se sobre os principais elementos da crise: 1) a reposição das instituições legais, já que depois da demissão de Chadli a Assembleia fora dissolvida pela convocação do corpo eleitoral para as funestas legislativas; 2) a reorganização do pluralismo e do pluripartidarismo eliminando tudo o que os desviaram de um funcionamento normal; 3) a erradicação do terrorismo sem declarar guerra à parte do povo que apoiava e simpatizava com ele, e àqueles que o seguiam por medo - um medo mais forte que o respeito pela lei, que de resto estava totalmente ausente em muitos lugares(1); 4) enfim, as reformas necessárias para a recuperação de uma economia transtornada não só por razões internas provocadas pelas colossais mudanças na economia mundial mas também pelo desgoverno de Chadli desde que chegou ao poder, e para fazer face aos problemas sociais, morais e culturais decorrentes destas reformas, apesar do esforço de solidariedade empreendido pelo governo.
E a Argélia moderna, com o seu exército nacional popular, os seus serviços de segurança, os seus quadros em todos os ramos e domínios está a conseguir ganhar a aposta: no final de 1997, afirmou-se a democracia pluralista, erguendo-se os diferentes elementos que constituem o edifício institucional nacional e colocando-se um ponto final na crise política e institucional.
Um consenso político está a instaurar-se em torno do respeito pelo próximo e da liberdade de expressão: todos os valores políticos e morais sobre os quais a sociedade viveu até aqui estão a ser postos sobre a mesa, discutidos e criticados para afirmar aqueles que podem continuar a reger a sociedade e consagrar outros mais adaptados às novas realidades. A sociedade está a aprender – pagando caro – o que é o Estado de direito, o que é a modernidade.
Ela está a por à prova os valores religiosos à luz da busca do progresso e da modernidade. E a crise dramática que sobreveio da interpretação islamista destes valores está a ser resolvida pela desmistificação definitiva – pensamos nós – do integrismo religioso e da sua vontade de manipulação da religião e dos valores religiosos com fins políticos. Neste domínio, visto que a abordagem deste problema no nosso país é das mais radicais, a sociedade argelina regista resultados exemplares, um pouco como aconteceu na sua luta pela independência nacional, compreendendo a importância deste objectivo, não só por ela mas também por muitos povos que estão na mesma expectativa. Nesta sua luta por tais resultados radicais, ontem a independência, hoje a revolução moderna, ela paga, como pagou no passado, um preço elevado. É por isso que o olhar horrorizado que sobre nós lançam não apenas o nosso inimigo de ontem, o colonialismo, e de hoje, o neocolonialismo, mas também e sobretudo o amigo, é para nós muito doloroso. A Argélia que luta e triunfa sobre dificuldades monstruosas tem necessidade de uma solidariedade muito mais confiante que aquela que encontra junto da opinião pública mundial.


Uma história de luta

Falei de dificuldades monstruosas: não é uma figura de estilo. Julguem-nas!
A Argélia nasceu com a independência depois de uma provação de mais de sete anos e meio que foi o último patamar de uma «guerra de 132 anos que pela sua duração e crueldade insustentáveis, sem esquecer a injustiça gritante, quebrou irremediavelmente, poderíamos dizer, qualquer coisa de vital, a longo termo, nas forças e profundezas psico-motrizes e espirituais» do nosso povo (2). Sem esquecer «todos os factos e matanças colectivas, raides de terror, pilhagens, expedições desproporcionadas com o seu objecto, devastações operadas a frio, etc. com que (...) a guerra de conquista está recheada até à náusea...»(3). E considerando apenas a devastação causada pela guerra colonial entre 1954 e 1962, a Argélia saiu infinitamente mais martirizada do que a França da sua libertação do jugo hitleriano. O número de aldeias destruídas, de populações deslocadas e presas em campos cercados, as destruições económicas e sociais são infinitamente mais elevadas e mais graves do que as verificadas em França. Esta, contrariamente à Argélia, manteve todo o seu aparelho de Estado – e portanto toda a sua longa experiência histórica – as suas fábricas continuaram a laborar, mesmo se era para a economia de guerra hitleriana. E todavia, a França teve necessidade do plano Marshall para se levantar. A Argélia foi obrigada não apenas a útilizar até à exaustão os seus magros recursos (ela não tinha mais do que um punhado de quadros economistas e administrativos, um número ridículo - face às necessidades – de quadros licenciados e operários qualificados, de universitários, etc.), como herdou a dívida colonial que teve de pagar. O seu petróleo pertencia, devido aos investimentos que tinham sido realizados, à potência colonial...
No plano político, a independência foi marcada, desde os primeiros dias, por uma crise que quase degenerou numa guerra civil, sendo atenuada com o tempo e com os desenvolvimentos progressistas da edificação nacional. Acresce que mesmo estes desenvolvimentos foram consumidos pela orientação socialista, cuja derrocada teve consequências negativas que continuamos a pagar.
Enfim, os esforços e os resultados da edificação nacional iriam ser postos cada vez mais em causa por uma demografia galopante que multiplicou a população por dois em duas décadas e por três nos nossos dias. E esta demografia era – e ainda é – difícil de conter, uma vez que é muito mais fácil progredir na modernização material e técnica do país do que na «modernização» dos espíritos...
Eis algumas pistas para compreender um pouco melhor a situação que prevalece no nosso país. São alguns critérios à luz dos quais podemos julgar o nosso povo e os resultados que ele concretizou através dos seus esforços todos orientados para a modernidade, o que faz da nossa sociedade uma das mais dinâmicas do mundo árabo-muçulmano, com uma democracia pluralista autêntica que certos censores pretendem avaliar em função da que existe na América ou na Suíça de hoje, esquecendo o nosso ponto de partida: o de uma sociedade colonizada, ou seja impedida de aspirar à democracia e à modernidade. E em vez de contribuir - pelo menos para se fazerem perdoar o papel de carcereiro colonialista – e encorajar este esforço visando a modernidade, eles aí estão «sempre prontos a explorar os pontos fracos, a se infiltrar pelas falhas deixadas sem defesa, a encorajar a perpetuação de valores e mentalidades arcaicas (no nosso país) para melhor impor a sua cultura...»(4) . Nisto reside o segredo do apoio da França oficial, e socialista, aos nossos integristas, apesar dos atentados que perpetraram em território francês: pretendiam um poder onde os islamitas tivessem peso, como no Irão, um poder mais fácil de desestabilizar, ao qual se podem impor mais facilmente diktats e embargos, em vez de conviver com um regime moderno empenhado na legalidade internacional e que quer ser tratado na mais total igualdade...


A mudança das mentalidades

A nossa sociedade não tem perante ela uma tarefa fácil. Ela experimenta na carne – e mais uma vez não é uma figura de estilo – o que é um Estado de direito, qual é o lugar e o papel da religião. E no centro encontra-se a questão da mulher, do seu lugar e papel: a mulher que marca pontos no sentido da emancipação, sua e da sociedade no seu conjunto. Ela fá-lo pagando um preço caro pela sua resistência mais ou menos consciente e frequentemente militante contra a barbárie islamita, tal como o tinha feito contra a barbárie colonial. É preciso viver neste país para ver a vitalidade das belas jovens que não aceitaram o diktat terrorista e vestem-se de forma moderna; mas mesmo aquelas que usando o véu invadem as ruas e ocupam os postos de trabalho, reivindicam os seus direitos de cidadania. Uma vez que, como antes referi, não é fácil mudar as mentalidades ao ritmo das mudanças rápidas nas condições materiais e técnicas e das exigências do mundo contemporâneo.
Durante anos, o terror islamita tentou impedir os professores de darem as suas aulas. Muitos foram degolados em frente dos seus filhos e dos seus alunos... mas nada disto surtiu efeito. Nem os pais nem os alunos cederam e continuaram a ir à escola... Se, ontem, eram os símbolos da modernidade da sociedade que eram visados: quadros da economia e do Estado, onde se incluíam os professores, jornalistas, publicistas e outros – onde o elemento feminino teve mais do que a sua parte – hoje são as próprias bases da logística terrorista que são visadas, na sequência de ajustes de contas internos entre grupos terroristas e da vontade manifestada de diferentes maneiras por antigos apoiantes do terrorismo de não assegurar mais esse apoio, não hesitando em pegar em armas para se defenderem da extorsão. As acções antes realizadas nas cidades passaram assim a ser executadas nos meios onde os terroristas têm mais facilidade em agir.
É esta necessidade de viver, de pertencer ao seu tempo, apesar das reticências ou das dores individuais e sociais, que explode na nossa sociedade e a faz tomar certas opções e dar certos passos para a modernidade. Sentimo-nos infelizes por vermos que as opiniões mundiais, e mesmo os nossos amigos, não vêem a realidade da Argélia moderna vibrante de vida e a reduzem à macabra acção dos terroristas. Dói-nos que a imagem da Argélia e do islão seja associada ao rosto odiento do terrorismo islamita.


«Avante!» Nº 1271 - 9.Abril.98