A unidade
muitos anos depois

Por Jorge Sarabando


Participei em Aveiro nos actos comemorativos da 3º Congresso da Oposição Democrática, um dos momentos mais altos e decisivos de luta e unidade contra a Ditadura. E interrogo-me, ainda hoje, porque senti entre muitos abraços, afectos repartidos, comuns convicções assumidas nas justas palavras por todos saudadas, a serena alegria e o conforto íntimo que só um reencontro de amigos consegue.
O fascismo terminou, embora persistam as sementes que o poderão fazer germinar de novo. Que perdura, então, para além da memória de um combate travado há 25 anos?
Não vou deter-me, nesta crónica breve, na análise do historial dos Congressos de Aveiro e do secular fio condutor de lutas pela liberdade, presente no valioso estudo de José Tengarrinha. Talvez não acentuasse, por me parecer simples conjectura, a ligação entre o clima internacional da época e a convocação do 1º Congresso, e sublinhasse a visível influência do programa do VI Congresso do PCP no conteúdo das Teses e Conclusões do 2º e 3º Congressos de Aveiro bem como nas propostas da Oposição na década final do fascismo.
Mas o que me parece mais relevante em diversas intervenções foram as pistas de reflexão sobre o significado presente da luta pela democracia. Sem ter encontrado rasto de qualquer nostalgia passadista ou mera sugestão de saudosa romagem, destaco antes a valorização feita da actualidade de muitos ideais de há 25 anos, da persistência de justas aspirações que continuam por cumprir ou a responsabilidade que a todos cabe de não separar a luta pela liberdade de uma ética da liberdade, ou seja, que não podemos ignorar o modo como a liberdade é exercida nas condições concretas da vida humana.


O exemplo
de Mário Sacramento

Um dos traços mais fortes dos Congresso de Aveiro continua a ser a unidade de acção dos seus promotores.
Creio que essa unidade, além das condições objectivas, se deve, em grande parte, à intervenção de Mário Sacramento na resistência cívica de que foi, durante décadas, o principal impulsionador.
Membro do Secretariado do 2º Congresso Republicano e participante dos movimentos que o precederam pude testemunhar as suas excepcionais qualidades humanas e políticas.
Dele guardo, como certamente os que o conheceram e acompanharam, a grata imagem de um homem que preferia a firmeza à dureza, que aliava a intransigência na defesa dos princípios à tolerância para com opiniões diferentes e à fraterna compreensão da sensibilidade de cada um, que sabia distinguir o essencial do secundário, e a todos contagiava com a sua tenacidade, coragem, exigência intelectual e aquele seu inconfundível modo de quem prefere convencer a vencer.
Talvez a memória de Mário Sacramento, médico e escritor comunista, que atravessou os anos de chumbo da ditadura de cabeça erguida, entre golpes censórios, prisões e perseguições sem fim, e cuja obra literária e perfil humano requerem ainda um olhar e um estudo mais atentos, tenha estado presente na feliz comemoração dos congressos de Aveiro.


Unidade necessária

Mas a interrogação mais pertinente não será tanto a que pretenda explicar o espírito unitário que se prolonga desde os combates de há 25 anos e se exprimiu agora de forma tão espontânea, mas porque a unidade entre os que os viveram e entre os que só mais tarde despertaram para a cidadania é cada vez mais urgente e mais necessária.
Quando o poder económico tende a subordinar o poder político, quando o mercantilismo invade e perverte todas as esferas da actividade social, quando a globalização financeira progride sem a globalização dos direitos laborais, quando o poder da comunicação é cada vez mais controlado, quando o ser humano é coisificado na voragem da competição e do lucro máximo, quando as desigualdades crescem apesar do furor consumista, quando a potência dominante pretende impor a todo o mundo o império dos seus interesses, a unidade é mais urgente e necessária.
Os comunistas estiveram entre os primeiros que apontaram, com lucidez e energia, a tragédia humana, a irracionalidade económica e a injustiiça intrínseca do capitalismo neo-liberal, declarado modelo terminal da história.
Mais do que palavras, já puídas pelo uso inconsequente, como diálogo ou solidariedade, ou compaixão, no léxico da direita, a época que vivemos exige debate sério e acções concretas para construir alternativas.
Novos tempos, antigas e novas lutas.


«Avante!» Nº 1271 - 9.Abril.98