A TALHE DE FOICE

Das duas, uma


«Fome é fome, em qualquer parte do mundo». Esta constatação, na melhor tradição do senhor de La Palice, é do primeiro-ministro António Guterres, que no passado fim-de-semana, em Londres, parece ter sido atacado por um ataque agudo de «humanismo».

Num encontro onde o negócio foi rei e os argumentos se esgrimiram em números, o nosso pio ministro entendeu por bem estender a «outra face» à Indonésia, que aproveitou a deixa e assestou nova bofetada na diplomacia portuguesa, deixando de cara à banda a delegação lusa mais o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, chamado para apadrinhar um encontro que não houve e cujas certezas de haver foram propaladas aos quatro ventos na imprensa nacional.

Já alguém disse que sempre que se trata de Timor-Leste os governantes portugueses perdem o Norte, mas estamos em crer que desta vez a coisa foi longe de mais. É que Guterres, não satisfeito com a desfeita das autoridades indonésias em desaproveitarem a oportunidade de trocar impressões com ele sobre uma questão que se arrasta há quase um quarto de século, ainda votou a favor de uma ajuda ao regime de Suharto, a braços com uma das maiores crises financeiras e económicas de todos os tempos.

Que a ajuda é «humanitária», justifica Guterres, asseverando que «fome é fome em qualquer parte do mundo» e que não está na natureza dos portugueses exercer retaliações sobre os povos para fazer vingar os seus pontos de vista políticos. O país ficou de boca aberta. É que só alguém muito distraído é que não sabe que a família Suharto e seus acólitos detêm a parte de leão das riquezas indonésias, pelo que se a crise afecta a população do país, semeando inclusive a fome, isso se deve em primeiro lugar à política exploradora e despótica do regime, que não consta ter sido posta em causa no encontro de Londres. Como se isto não bastasse, acresce que no centro dos debates na capital britânica não esteve o interesse dos trabalhadores e dos povos asiáticos, cuja mão-de-obra barata é cada vez mais apreciada pelo capital internacional, mas o interesse desse mesmo capital e das políticas neoliberais que fizeram da Ásia um autêntico paraíso da especulação financeira. É o que explica, de resto, o facto de Timor-Leste não consituir nenhum impecilho para as excelentes relações da União Europeia com a Indonésia, pelo que o voto contra de Portugal não alteraria uma vírgula à decisão de dar uma ajuda a Suharto.

Posto isto e os factos, das duas uma: ou Guterres, na sua ingenuidade, se propõe ser o paladino do «humanismo» nas relações internacionais e o Governo vai passar a defender em todos os fóruns o levantamento das sanções económicas a todos os países (Iraque, Cuba, Jugoslávia, Líbia, etc.) porque isso afecta em primeiro lugar os respectivos povos; ou tudo não passou de um exercício da mais pura hipocrisia, sabendo-se - como se sabia - que a oposição portuguesa e a causa timorense não merecem mais do que a distraída complacência dos parceiros europeus.

Ao esgrimir desta forma a fome dos trabalhadores e do povo da Indonésia, Guterres revelou uma vez mais ser um «bom aluno» da política comunitária: quando o que está em causa é a cor do dinheiro, fica sempre bem falar de direitos humanos. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1271 - 9.Abril.98