ROLETA
russa


Já lá vão mais de 2 semanas, Boris Eltsine saiu de uma das já habituais "baixas por doença" e, num ápice, varreu duma assentada todo o Governo russo, sem qualquer explicação minimamente elucidativa sobre razões e objectivos. A surpresa foi (parece) geral: "Estranha", "inesperada", "incompreensível", foram algumas das exclamações repetidas na Rússia e pelo mundo. Os polítologos especialistas em "Kremlinologia", da mais variada estirpe, desmultiplicaram-se a dar versões e diversões, traçar múltiplos cenários virtuais, num alucinante jogo de sombras. Na verdade, o reino das trevas em que se movem os actores da cena do poder na dita "democrática" Rússia eltsiniana, não permite decifrar o enredo do drama, que é mesmo obscuro. As oligarquias, políticas, económicas e outras, internas e externas, movem-se num vaivém contínuo de entradas e saídas, laços que se tecem, rompem e recompõem. Um trágico teatro de marionetes em que uns puxam os cordelinhos nos bastidores, outros sobem à ribalta, e vice-versa.

Além da já crónica instabilidade, ela própria uma significativa constante dessa complexa "década de medonho trauma pós - comunismo" (The Economist) , algumas linhas de força se podem, entre outras, apontar.

Antes de mais, a situação de degradação económica, social e moral em que está mergulhada a sociedade russa é cada vez mais insustentável. Com a queda do PIB avaliada em mais de 40%, uma previsão incerta da subida de 0,2% não é nada, pois os investimentos continuam a diminuir e a dívida externa a crescer alarmantemente, com operações de títulos de Estado a juros de 40% e a ameaça do pagamento do serviço da dívida em poucos anos absorver 70% do orçamento. Há 32 milhões de russos a viver abaixo do limiar da pobreza - revela o próprio Primeiro Ministro indigitado Kirienko ao Conselho da Federação. Os salários são baixíssimos e milhões de trabalhadores não os recebem sequer, assim como muitos militares, professores, cientistas... Os pensionistas recebem um mínimo de 350 a 400 rublos quando o mesmo Kirienko diz que "o mínimo vital oficial" é de 800 rublos/mês. No mar da miséria, o luxo dos "novos russos "insulta e provoca. Aumenta o banditismo, o racket, o terrorismo privado, o narco negócio e outros tráficos. Todos os índices sanitários estão no vermelho fixo, a regressão civilizacional traduz-se numa quebra da "esperança de vida" de mais de 6 anos. A mendicidade é um recurso generalizado de sobrevivência. A passividade (relativa) das massas russas tem limites. Surtos de protesto e organização operária, e não só, têm-se multiplicado. Se a acção de protesto pan-russa marcada para 9 de Abril for um êxito, não deixará de pesar no prato da balança. Será um passo mais no caminho indispensável, difícil e demorado sem dúvida, de redobrada consciência, organização e intervenção das massas populares na vida pública, sem a qual a Rússia não terá futuro.

Sem dúvida, a actual conjuntura traduz uma agudização dos variados confrontos, alianças e lutas de morte, entre os diversos oligarcas (de vária origem e tipo) que se vêm digladiando e engrandecendo com o mafioso processo de privatização. O compadrio, a traição, a corrupção, a burla, a especulação, o crime, deram-se as mãos entre o poder político e poder económico confundidos. Com os grandes tubarões transnacionais do Mundo em conluio e concorrência. O que resta é ainda fabuloso. A volta da Rosnef,o maior gigante petrolífero estatal, parece girar grande parte da luta actual. Mas não é presa única. Para além das manobras para abocanhar o maior bocado possível dos bolos que estão agora na mesa do banquete dos tubarões, cada vez mais claro se torna que a batalha pela sucessão de Boris Eltsine está lançada e é uma das molas reais do que está a suceder hoje na Rússia.

Ficaríamos por aqui, nas breves alusões à perigosa roleta russa que continua a girar. Mas não podemos calar a notícia que nos acaba de chegar da própria Rússia. O Pravda de 4 de Abril dá notícia da realização de um plenário do CC do PCFR realizado dia 2: o Partido Comunista da Federação Russa decidiu não aceitar o proposto Kirienko como Primeiro Ministro, mesmo que Eltsine vá para a dissolução da Duma, e apoiar energicamente a jornada de protesto nacional marcada pelos sindicatos para dia 9, como início já de uma eventual campanha eleitoral. Com essa decisão vão participar na prevista "mesa redonda" com Eltsine e esperamos que tal posição contribua para uma saída favorável da crise actual. — Carlos Aboim Inglez


«Avante!» Nº 1271 - 9.Abril.98