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...tudo é relativo

Por Francisco Costa


A última das célebres «noites temáticas» do canal franco-alemão Arte foi dedicada, há precisamente oito dias, à personalidade fascinante, contraditória e, já no seu tempo, altamente mediática, que era Albert Einstein. É curioso, aliás, que a certa altura da emissão um dos cientistas convidados (Jean-Marc Lévy-Leblond) assim se tenha pronunciado a propósito da tão alegada ambiguidade do grande mestre da Física: «Ele é um dos últimos físicos do século XIX e, ao mesmo tempo, um dos primeiros do século XX; ele é ainda um físico clássico e, afinal, já um físico moderno; ele é o homem que todos reconhecem como pacifista mas que vai empenhar o Presidente dos EUA na via da construção da bomba nuclear; é o homem que demonstra um grande apego à Humanidade mas que, por outro lado, é um solitário, bastante egoísta em certos aspectos.»

Esta caracterização de uma certa ambivalência e contradição que marca uma certa visão da dimensão do papel representado por Albert Einstein na História da Humanidade e da Ciência estava inserida no segundo de um conjunto de programas e documentários que ocuparam esta fascinante «noite temática». Em primeiro lugar, um documentário britânico - produzido para a série Horizon com a chancela prestigiada da BBC - no qual era feita uma reconstituição da vida de Einstein. Realizado por Peter Jones, o filme fazia um uso notável da encenação ficcionada (representando o actor Andrew Sachs a personagem do cientista), intercalada com depoimentos de físicos e especialistas. O fio temático era o constante questionar que leva à revelação científica, mas sempre realçando o facto de Einstein apostar constantemente na simplicidade dos seus enunciados. Por isso, o grafismo utilizado correspondia com grande adequação e clareza a esse propósito ilustrativo, chegando ao ponto de harmoniosamente serem inseridas na imagem real dos sítios, das casas, dos objectos e dos adereços (escolhidos e filmados de forma admirável) a animação computacional altamente sugestiva, sobretudo a propósito dos escritos de Einstein que nos falavam do seu sempre presente desejo de chegar um dia a «cavalgar um raio de luz».

As mesmas aquisições tecnológicas, a par do inultrapassável poder da imagem como suporte da palavra, acabariam por ser decisivas no penúltimo segmento da noite, um documentário-reportagem de Françoise Wolff rodado durante um dos habituais estágios de estudantes de física, cientistas e potenciais candidatos ao Nobel, anualmente realizados no Centro Ettore Majorana situado na belíssima localidade de Erice, na Sicília. Aqui, eram as prodigiosas imagens da reparação no espaço do telescópio Hubble ou as fantásticas revelações das descobertas do satélite Cobey ou, ainda, a reconstituição gráfica do big bang, que acompanhavam e iluminavam as interrogações e os sorrisos visionários daqueles que mais pareciam crianças-grandes em busca do desconhecido, no acto de se debruçarem sobre os mistérios do nosso devir e do nosso porvir.

Mas esta absorvente noite do Arte não deixaria de ficar manchada pela suspeita de manipulação ilegítima do material fílmico. E o espectador mais atento - até mesmo o menos familiarizado com os mecanismos da montagem e da mise-en-scène, não terá deixado de detectar uma completa e radical alteração formal no segundo documentário da emissão - «Einstein, Um Mito, Um Homem» - sobretudo a partir da sequência relativa às investigações, na Rússia de hoje, acerca da alegada contestação pelas autoridades de então das descobertas de Einstein sobre a «relatividade», enquanto «teoria burguesa».

Quem sou eu, pobre crítico, para duvidar da existência de tamanhas aleivosias mas não deixa, entretanto, de ser estranho que, nessa longa sequência, tenha passado a ser utilizada, no acompanhamento dos movimentos de câmara, uma sinistra música de fundo associada ao eco dos passos em escuros e infindáveis corredores levando a portas fechadas; ou os planos subitamente captados em picado e contra-picado; ou o emprego da teleobjectiva ou da grande angular, ambas deformando, em extremos opostos, a perspectiva do olhar e do desfilar de carimbos e caracteres cirílicos, indecifráveis ao comum do espectador, mas tradicional e subliminarmente associados à tenebrosa iconografia da repressão e da opressão vendida em tantos e tantos exemplares de ficção cinematográfica dos tempos da «guerra-fria» e não só.

Dir-me-ão que, no mesmo filme, se denunciava por outro lado a paranóia do macarthismo, o rol de acusações do FBI a Einstein, o arquivar por falta de provas, em 1954, de um processo de mais de mil páginas acusando o cientista das maiores subversões. E acrescentarão que ali se via, também, o ex-embaixador de Israel nos EUA, dizendo: «Creio que ele via nas formas extremas do anticomunismo um renascimento das condições que o haviam forçado a deixar a Alemanha.». Mas que querem? Talvez eu seja por natureza desconfiado. E nada me convence que a mensagem não pretendesse ser esta: «Entre o cravo e a ferradura, vá o Diabo e escolha!». Ou, pior ainda: que, como demonstrara o nosso Albert, «...tudo é relativo!».


«Avante!» Nº 1271 - 9.Abril.98