EDITORIAL

Ei-los: os Ex


É sempre assim: um concreto reflexo condicionado condu-los ao encontro marcado e no momento certo aparecem no sítio certo e dizem e escrevem o que deles se espera que digam e escrevam. Deslocam-se de entrevista ou de artigo de opinião e deixam atrás de si um rasto de enjoativos odores a rosas fanadas, a laranjas importadas. Os jornais tratam-lhes da encenação, dão-lhes a boca de cena e eles protagonizam: exibem a sua profissão de ex-comunistas, exibem à sua maneira, a condição de arrependidos; de apóstatas que venderam a alma ao Diabo para comerem o pão que Deus amassou; de ex-pecadores que finalmente viram a luz (como diz Noam Chomsky). Estão como peixes na água ou, se quisermos ser mais rigorosos, estão como certos peixes em certas águas já que o protagonismo está para eles como os esgotos estão para as tainhas. Ainda segundo Chomsky: são, por tudo o que acima ficou dito, "peritos" – peritos cujo destaque se deve em grande parte à utilidade que têm para quem os quer, e por isso os nomeou, "peritos". Os motivos que os levaram a passarem-se para o outro lado são diversos, mas aos meios de comunicação interessa essencialmente exibi-los, explicita ou implicitamente, como pecadores que viram a luz, que confessaram os pecados e juraram arrependimento – coisa esta de suprema importância numa sociedade que eleva à categoria de dignidade a confissão do pecado e o consequente arrependimento (aqui há tempos, numa das suas soberbas homílias, o engenheiro Guterres, patrono natural de todos estes arrependidos, pregava que "o arrependimento é um acto digno, quando leva à confissão dos pecados").

Bebidos e embebidos de "modernidade" – eufemismo com que se designa, hoje, a ideologia capitalista – não passam afinal de provincianos que julgam ter ideias mas apenas repetem clichés em moda, que julgam ter opiniões próprias mas apenas recitam a litania típica daquilo a que François Brune chama "a ideologia ambiente" – que é a ideologia dominante e mais do que isso: que procura infiltrar-se em cada cidadão e despersonalizá-lo (para melhor o submeter aos imperativos da ordem sócio-económica); que diz a cada cidadão: "tens que ser um homem moderno, um homem do teu tempo" (para melhor o convencer da sua impotência face às evoluções do mundo); que procura convencer cada cidadão da inevitabilidade das "inevitabilidades", através da sacrossanta fórmula de que o que é inevitável é aceitável e o que é aceitável é bom (ou seja: que o capitalismo é o sistema ideal, incontestável e incontestado, contra o qual é desnecessário e inútil lutar).

Chegaram, então, de entrevista e de artigo de opinião e disseram o que estava previsto sobre "o dilema do PCP", ao qual restam "apenas duas opções": desaparecer ou desaparecer. Isto é: "o PCP, como todos os partidos comunistas, não é renovável", ou só o é se seguir determinado caminho, cujo é: "começa por retirar a foice e o martelo, depois abandona a bandeira e, finalmente, mudará de nome" – renovável … assim como quem diz descartável. E é certamente sonhando com este arrependido conceito de renovação que um Dupond proclama que "a reforma no PCP é um facto", que "ela está em curso", enquanto o outro Dupont descobre, luminar, que "a transformação do PCP é possível". Enfim, uns sonhadores.

A qualidade de "perito" tem exigências incontornáveis e mesmo que, com magnanimidade, se admita que, num caso ou noutro, haja vontade de tornear tais exigências, não há duvida que a generalidade destes "peritos" se sente como os tais peixes nas tais águas. É possível que os envergonhe (porque realça o conteúdo dos seus arrependimentos) a existência de um partido revolucionário que, porque o é de facto e quer continuar a sê-lo, ousa contestar a nova ordem mundial; ousa desafiar os donos do Mundo; ousa combater esta sociedade exploradora e opressora e contrapor-lhe um projecto de sociedade humanista e humanizada, sem exploradores nem explorados. Daí a incapacidade desses "peritos" para perceber que as mudanças e as renovações e as transformações – sempre necessárias num partido que não se demite da sua condição de comunista – levadas ou a levar a cabo no PCP, têm em vista, sempre, a procura de caminhos que conduzam ao reforço do Partido, ao seu melhor apetrechamento para responder aos novos e velhos problemas, à consolidação da sua condição de partido comunista.
Percebe-se que a existência de um partido como o PCP incomode muita gente. Percebe-se a obsessão doentia dos que, permanentemente e há muitos anos, vêm decretando a "morte inevitável" ou a "morte já consumada" do PCP. Percebe-se, na situação actual, a mobilização dos tais "peritos", chamando-os ao cumprimento dos deveres que lhes são inerentes. Percebe-se que os preocupe o facto de constatarem que o PCP está bem, ou seja: que o PCP tem a noção da grandeza e do conteúdo das dificuldades e dos obstáculos que se lhe deparam; que tem a noção das suas muitas deficiências e insuficiências orgânicas e interventivas; que está determinado a procurar superar essas dificuldades, tornando mais eficaz a força de que dispõe e não arredando pé de um lugar que historicamente lhe pertence: ao lado dos explorados, dos oprimidos, dos injustiçados; ao lado dos que lutam todos os dias por melhores condições de vida e de trabalho; ao lado dos que persistem no objectivo de construir uma sociedade justa, fraterna, solidária e livre.

Por muito que custe aos eternos profetas do fim do PCP, a verdade é que, na sequência da recente reunião do Comité Central, milhares de comunistas, por todo o País e através de um amplo debate colectivo, dão expressão concreta ao novo impulso na organização, intervenção e afirmação política do Partido.
E esta é a melhor resposta para os que sonham e tudo fazem para que o PCP deixe de ser o que é e quer ser, e passe a ser o que eles desejariam que fosse. Inclusive para os tais "peritos" que, fatalmente, acabarão por recolher, melancólicos e cabisbaixos, às casotas do seu arrependimento – com ar condicionado, lareiras e piscinas?: sem dúvida. Mas, irremediavelmente, casotas.


«Avante!» Nº 1272 - 16.Abril.1998