Irlanda
Acordo histórico a caminho da paz


Os irlandeses dos dois lados da fronteira vão referendar no próximo dia 22 de Maio o histórico acordo de paz assinado sexta-feira no castelo de Stormont, em Belfast.
Após intensas negociações, mediadas pelo ex-senador norte-americano George Mitchell, os participantes nas conversações multipartidárias comprometeram-se a pôr termo à violência que há cerca de três décadas dilacera a Irlanda do Norte (Ulster) e a adoptar um projecto político que poderá finalmente trazer a paz àquele território.

Na opinião de George Mitchell, o homem que trabalhou durante 21 meses para que nacionalistas republicanos e unionistas se entendessem, «o acordo é justo, porque permite às duas comunidades viver juntas em paz e reconciliadas». Mas, como alertou, o documento «não consegue a paz por si só, apenas cria uma oportunidade para a conseguir. É um bom primeiro passo, mas há ainda muito caminho para percorrer».

Convencer os seus partidários para que compreendam o alcance do acordo e o aceitem é a grande tarefa que os principais partidos da Irlanda do Norte têm pela frente. Se em relação aos resultados do referendo na República da Irlanda não parecem existir dúvidas - a população, maioritariamente católica, apoia o processo -, o mesmo não se pode dizer da maioria conservadora, unionista e protestante do Ulster (que teme perder os privilégios de que usufruiu até à data), nem dos sectores mais radicais dos nacionalistas, para quem só o caminho das armas pode levar à independência.

O Acordo, cujos principais pontos publicamos abaixo, bem como a Declaração de Stormont, mantém o Ulster no Reino Unido, ainda que criando pontes institucionais entre o território e a República da Irlanda que poderão abrir, no futuro, caminho para a reunificação da Irlanda.

Como afirma Mitchell, «há gente em ambos os lados que quer fazer descarrilar este processo, que está implicada no caminho da violência». O grande receio agora é que «essa gente intensifique as suas actividades nas semanas que faltam até à realização do referendo».

Entretanto, todos os dirigentes se manifestam dispostos a fazer campanha para que os referendos de 22 de Maio traduzam um apoio inequívoco ao Acordo de Stormont. George Mitchell apelou mesmo a Clinton para que visite o Ulster antes daquela data, considerando que a sua visita reforçará os partidários do Acordo.

Clinton já afirmou o seu desejo de «ajudar, mas não de intervir», e que poderá ir ao Ulster se isso for do interesse de todos as partes. Recorda-se que nos EUA cerca de 39 milhões de pessoas (16 por cento da população) se declaram de origem irlandesa, pelo que a questão do Ulster é seguida com particular atenção.

A frágil paz que se vive no Ulster passou já esta semana a primeira «prova de fogo»: a confraria «Apprentice Boys» inaugurou segunda-feira a tradicional temporada das marchas protestantes, que assinalam as vitórias do passado sobre os católicos. Ao contrário do que é costume suceder todos os anos, desta vez não houve distúrbios. Mas ainda faltam celebrar cerca de 3.500 marchas.

_____


O Acordo de Stormont

O acordo assinado sexta-feira no Castelo de Stormont, em Belfast, e que será submetido a referendo popular, tanto no Norte como no Sul, no próximo dia 22 de Maio, lança as bases para a criação de um órgão democrático autónomo no Ulster, bem como de organismos de cooperação entre entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, para além de definir as relações desta última com o conjunto do Reino Unido (Inglaterra, Escócia e País de Gales). O documento inclui ainda o procedimento a seguir para o desarmamento dos grupos paramilitares, as linhas mestras a adoptar pelo sistema judicial e policial no Ulster e a libertação dos presos políticos.

Eis os principais pontos do acordo:

Princípios constitucionais - O acordo reconhece o princípio do consentimento, o que significa que uma mudança do estatuto da Irlanda do Norte só poderá ocorrer com a aprovação da maioria dos seus habitantes. Trata-se do reconhecimento implícito de que a minoria católica do Norte e a maioria católica do Sul pretendem uma Irlanda unida, e que a maioria protestante do Norte deseja por enquanto permanecer no seio do Reino Unido. No caso da situação evoluir no sentido da unificação da Irlanda, cada governo deverá obrigatoriamente respeitar as aspirações da população da Irlanda do Norte. O documento contempla o direito à dupla nacionalidade irlandesa e britânica, que se manterá seja qual for o futuro da Irlanda do Norte.
Para já, o governo britânico propõe-se revogar a legislação de 1920 que declara a sua soberania sobre o Norte da Ilha, enquanto o governo irlandês se afirma disposto a realizar um referendo para suprimir os artigos constitucionais que reivindicam a anexação do Norte.

Instituições democráticas - Uma Assembleia autónoma, democráticamente eleita, passará a exercer os poderes legislativo e executivo. De forma a evitar que a maioria unionista domine esta Assembleia, estão previstas várias medidas de equilíbrio: o novo Parlamento contará com 108 deputados eleitos por um sistema proporcional com base nas actuais 18 circunscripções existentes.
Até à transferência de novas competências, a Assembleia terá as mesmas atribuições do actual ministro britânico para a Irlanda do Norte (Finanças, Função Pública, Desenvolvimento Económico, Educação, Saúde e Protecção Social, Meio Ambiente e Agricultura).
Para o exercício do poder executivo, a Assembleia elegerá um primeiro-ministro e um vice-primeiro ministro, apoiados por dez ministros. As decisões mais importantes deverão ser adoptadas por consenso entre os representantes das comunidades católica e protestante, ou por uma maioria de 60 por cento dos votos, formada com pelo menos 40 por cento dos deputados de cada uma das comunidades.
As comissões legislativas terão igualmente um presidente e um vice-presidente de cada uma das comunidades, sendo os respectivos membros designados em função dos resultados eleitorais. Todos os que não respeitarem as regras «democráticas e não violentas» serão expulsos.

Conselho ministerial Norte-Sul - Os ministros saídos da Assembeia do Ulster e do Parlamento da República da Irlanda (Dail) reunem-se duas vezes por ano em sessão plenária num Conselho ministerial Norte-Sul, cuja função visa essencialmente desenvolver projectos de cooperação nos domínios económico, social, ecológico, cultural, turístico ou programas europeus. Sem poder executivo, o Conselho responde perante a Assembleia do Norte e o Parlamento de Dublin.

Conselho anglo-irlandês - Composto por membros dos governos britânico e irlandês, da Assembleia da Irlanda do Norte, do Parlamento escocês e da Assembleia do País de Gales, bem como de representantes da Ilha de Man e das Ilhas do Canal da Mancha, o Conselho tem por objectivo discutir assuntos de «interesse mútuo», tais como os transportes, agricultura, meio ambiente, saúde e cultura. Este organismo reunirá duas vezes por ano em sessão plenária e periodicamente em reuniões sectoriais.

Conferência anglo-irlandesa - Esta nova instituição substitui o acordo bilateral anglo-irlandês de 1985 e destina-se a supervisionar a criação e funcionamento da Assembleia do Norte e do Conselho Norte-Sul. Não tem poder para alterar ou anular as medidas previstas no acordo de Stormont. Até à transferência de poderes para a nova Administração autónoma de Belfast, a Conferência tratará ainda de questões relacionadas com os direitos humanos, presos, justiça e polícia. Cabe igualmente a este órgão intensificar as relações de cooperação entre os dois governos nas questões fronteiriças.

Segurança - O governo de Londres compromete-se a: reduzir o destacamento militar na Irlanda do Norte em função dos níveis de normalização da segurança pública, tornando-o compatível com o de uma sociedade pacífica; desmantelar as instalações militares; regovar a legislação respeitante ao Estado de emergência na Irlanda do Norte.

Desarmamento - Todas as partes se comprometem a trabalhar para o total desarmamento dos grupos paramilitares que operam no Ulster. O processo, que contará com o apoio de uma comissão internacional, começará em Junho e deverá estar terminado no prazo de dois anos.

Polícia e Justiça - O acordo prevê a implementação de um corpo policial no Ulster aceitável pelos nacionalistas republicanos (actualmente a polícia é maioritariamente composta por conservadores unionistas), de forma a que num futuro de paz os agentes possam patrulhar as ruas sem armas. A reforma dos serviços policiais ficará a cargo de uma comissão independente que apresentará as suas recomendações quanto às alterações a levar à prática.

Presos políticos - Os governos de Londres e Dublin comprometem-se a implementar os mecanismos necessários para facilitar a libertação dos presos políticos, incluindo os que foram extraditados, condenados por delitos relacionados com a violência política, cometidos ou não na Irlanda do Norte. Os presos que permanecerem ligados a organizações que não decretem e respeitem de forma inequívoca o cessar-fogo não beneficiarão destas medidas. Uma vez desencadeado o processo, todos os presos deverão estar em liberdade num prazo de dois anos.

Direitos humanos - Os signatários do acordo comprometem-se a respeitar os direitos civis e a liberdade religiosa e a defender o direito a escolher livremente o local de residência. O governo britânico incorpará na legislação da Irlando do Norte a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o que permitirá aos cidadãos do Ulster recorrer aos tribunais europeus. Criará também uma Comissão independente sobre a igualdade de oportunidades e impulsionará o acesso dos membros das duas comunidades à função pública.

_____

Declaração final

1 - Nós, os participantes nas conversações multipartidárias, cremos que o acordo que negociámos oferece uma oportunidade real e histórica para um novo começo.

2 - As tragédias do passado deixaram um pesado e profundamente lamentável legado de sofrimento. Não devemos esquecer nunca os que morreram ou ficaram feridos, nem as suas famílias. Mas podemos honrá-los melhor através de um novo começo, em que nos empenhemos firmemente na concretização da reconciliação, da tolerância, da confiança mútua e na defesa e exigência de direitos humanos para todos.

3 - Confiamos na participação conjunta, igualdade e respeito mútuo como base das relações entre as comunidades na Irlanda do Norte, entre o Norte e o Sul e entre as ilhas.

4 - Reafirmamos o nosso total e absoluto compromisso com os meios exclusivamente democráticos e pacíficos para resolver as diferenças em questões políticas, e a nossa oposição a qualquer utilização da ameaça da força por outros para tentar alcançar qualquer objectivo político, tanto no que respeita a este acordo como em relação a outras questões.

5 - Conhecemos as diferenças substanciais existentes entre as nossas aspirações políticas, igualmente legitimas. Em todo o caso, esforçar-nos-emos com empenho no caminho da reconciliação e aproximação no âmbito das soluções democráticas acordadas. Comprometemo-nos a trabalhar de boa fé para garantir o êxito de todas e de cada uma das soluções estabelecidas neste acordo. Aceita-se que todas as medidas constitucionais e institucionais - a instituição de um Assembleia para a Irlanda do Norte e de um Conselho Ministerial Norte-Sul, um Conselho britânico-irlandês e uma Conferência Intergovernamental britânico-irlandesa, assim como algumas emendas às Actas do Parlamento britânico e à Constituição irlandesa - estão interligadas e são interdependentes, e que em particular o funcionamento da Assembleia e do Conselho Norte-Sul está tão intimamente interrelacionado que o êxito de uma depende do êxito do outro.

6 - De comum acordo, num espírito de concórdia, recomendamos firmemente este acordo ao povo, do Norte e do Sul, para a sua aprovação.


«Avante!» Nº 1272 - 16.Abril.1998