Poder mais perto dos cidadãos:
pretexto ou projecto?

Por Luís Sá
Membro da Comissão Política do CC do PCP


A alusão à necessidade de os deputados e o poder político e administrativo estarem mais próximos dos cidadãos, bem como as alusões à distância que tantas vezes hoje se verifica entre os titulares dos órgãos de poder e as diferentes comunidades sociais, são uma das principais razões invocadas pelo PS e o PSD para instituir círculos uninominais numa eventual revisão da lei eleitoral para a Assembleia da República.


É claro que o problema da proximidade do poder ao povo e aos seus problemas é um problema real. Curiosamente, porém, os que levantam a questão como pretexto para alterações do sistema eleitoral já recusaram aceitar medidas tais como obrigar juridicamente os deputados a dar um seguimento às questões colocadas pelos cidadãos (ainda que seja apenas acusar a recepção de cartas ou documentos e explicar porque opta por nada fazer) ou assegurar-lhes instalações para contactos com o povo na sede dos círculos por que são eleitos. Não revelaram também preocupação em assegurar que os deputados estejam onde há lutas dos trabalhadores e problemas das populações.

Ao mesmo tempo, referem a eleição em círculos uninominais como via para valorizar o deputado e o seu papel, para «personalizar a eleição» e combater a «partidocracia». Mas os que assim falam são os mesmos que ignoraram sempre os deputados nas campanhas eleitorais, centrando-as em «candidatos a Primeiros Ministros, como se estes fossem directamente eleitos. Têm igualmente recusado tomar medidas de reforço efectivo do papel do parlamento, mesmo uma medida tão simples como a de pôr termo à escandalosa possibilidade de os governos escolherem as perguntas orais dos deputados a que querem e não querem responder.

Independentemente desta questão, que mostra que o verdadeiro propósito do PS e PSD é essencialmente o de provocar uma maior alteração de comportamentos eleitorais num sentido bipolarizador, há um outro problema que, sendo uma velha questão da filosofia política, assume hoje novos contornos: como garantir que a intervenção dos cidadãos na vida política não se esgote, ou não se esgote quase totalmente, no voto periódico e que, pelo contrário, se multipliquem formas de participação nos diferentes procedimentos conducentes a decisões políticas e administrativas?

No entanto, se a participação e a intervenção mais constante dos cidadãos é um objectivo que merece um amplo acordo aparente, têm-se multiplicado formas de perversão. Para além disso, há problemas ignorados pelos partidos dominantes, que declaram ter preocupações nessa matéria, com destaque para problema da democracia da empresa. Muitos preocupam-se mais em proclamar categorias como a da «empresa-cidadã» do que em verificar se esta respeita e aprofunda os direitos dos cidadãos reais, de carne e osso, que nelas trabalham.

Quanto às matérias em que há perversão de objectivos verdadeiros em relação a objectivos proclamados por parte de outros partidos, avulta desde logo a questão da democracia directa. É um problema tanto mais importante quanto a representação política é normalmente justificada pela impossibilidade de os representados tomarem directamente decisões; logo, deveriam aproveitar-se todas as oportunidades para serem as próprias pessoas a pronunciarem-se.

O calendário político promete, neste aspecto, três referendos em poucos meses, para além de muitas autarquias se perguntarem também sobre que temas poderão fazer referendos locais no futuro, tanto mais que estes terão sido facilitados pela última revisão constitucional.

A democracia directa é seguramente altamente estimável para todos os que entendem que o exercício da cidadania deve ser mais do que o voto periódico, antes de deve projectar na vida de todos os dias, a começar pelo bairro, pela empresa, pela relação com os serviços públicos ou pela participação no processo de decisão política.

No entanto, se atendessemos exclusivamente ao que está proposto e a como nasceram as propostas de referendo e não às possibilidades de uma rectificação futura, seriamos tentados a dizer que o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. O referendo já foi proposto na sua degradação plebiscitária, como instrumento de procedimentos conducentes a rupturas anticonstitucionais e de regime. Depois, passou a ser um instrumento no sentido de tentar impedir a Assembleia da República de aprovar reformas e abrir as vias para as implementar, tais como tentar resolver o problema da interrupção voluntária da gravidez sem ser incriminando-a e fomentando o aborto clandestino; ou democratizar e imprimir racionalidade na administração regional, hoje poderosa, cara e assente em dezenas de divisões regionais diferentes. Em tudo isto, o PS fez sempre o que o PSD lhe exigiu, cedendo ao objectivo deste partido de impedir alterações positivas e resolver as suas contradições internas.

Nestes dois casos não se teve em conta um aspecto central que a regulação constitucional do referendo procurava garantir: evitar conflitos entre a representação parlamentar e o resultado das consultas directas às populações. Ou dito de outra forma, evitar que a democracia directa entrasse em conflito com a democracia representativa. Em vez disso, no caso do aborto vai-se referendar uma lei aprovada já na generalidade e no caso da regionalização vai-se referendar a eficácia de uma lei aprovada, publicada e em vigor e que resultou da emissão de parecer por centenas de municípios. Acresce que no caso do referendo sobre a regionalização não se manteve o referendo orgânico em que os municípios, através das assembleias municipais, construíam as regiões de baixo para cima, como estava previsto antes da revisão constitucional, nem se optou por um referendo regional, em que a população de cada região decide o que entende sobre a região proposta para a sua área. Optou-se antes por um referendo duplo, em que o resultado de um referendo nacional, ainda que tangencial, pode esmagar vontades regionais largamente maioritárias.

A isto tudo acrescente-se que se tem defendido um referendo «sobre a Europa» mas os que o fazem são os mesmos que recusaram o referendo em relação à moeda única. Dito de outro modo, recusa-se ao povo pronunciar-se sobre o essencial e pretende-se ao mesmo tempo referendar aspectos relativamente secundários da integração comunitária. As propostas conhecidas de referendo nesta matéria chegam ao ponto de formular questões que obviamente não merecem controvérsia, como a que diz respeito à política de emprego...

Ao mesmo tempo, temos visto como a descentralização, que deveria ter um papel especial na aproximação do poder ao cidadão, continua a ser um processo adiado ou pervertido.

Quando se falou em aumentar as verbas dos municípios gritou-se logo "aqui d’el-rei". A moeda única estaria em risco e esse seria o objectivo essencial. Só se admitiu transferir mais verbas se fossem acompanhadas de uma ampla transferência de encargos para os municípios. E houve declarações de membros do governo que se apressaram a proclamar que as autarquias se limitariam a pagar despesas e que os novos encargos não se transformariam em qualquer acréscimo real de poderes. De resto, tem-se visto em áreas como o ordenamento do território que o Governo, em vez de se centrar numa actividade essencialmente normativa e de planeamento, indicando com rigor o que deve ser preservado, opta por transferir o que há de mais importante para a esfera das competências centrais ou das intervenções casuísticas das comissões de coordenação regional e da restante administração regional periférica, burocratizando os procedimentos sem vantagens para ninguém.

A regionalização, por outro lado, inscrita na Constituição por consenso, transformou-se num processo conducente a uma argumentação terrorista e a adiamentos sucessivos, apesar de já estarem instituídas regiões, só que sem qualquer legitimidade democrática directa. Num país em que existem no continente dezoito distritos, cinco comissões de coordenação regional e dezenas de direcções regionais de ministérios, institutos, empresas públicas, todos a realizar enormes despesas e com centenas de cargos públicos, funcionando de forma descoordenada, fala-se em despesas da regionalização e em «tachos», sem referir as despesas que não seriam realizadas e os cargos públicos que seriam eliminados. Tudo para manter o máximo de controlo do poder por pequenos grupos, assegurar a sua opacidade e impedir verdadeiras reformas.

De tudo isto resulta que, ao contrário do que se afirma, não há uma verdadeira preocupação, coerente e sistemática, de aprofundar a democracia e colocar o poder mais perto dos cidadãos. Apenas há actos dispersos incoerentes, invocações deste tipo de objectivos para prosseguir outros fins, tentativas de marcar a agenda política sem reais mudanças democráticas, ou meros pretextos para travar reais reformas de sentido democrático e descentralizador.

Transformar a democracia numa prática constante e vivida pelo maior número possível de cidadãos, garantir o controlo político efectivo do poder, despertar um interesse cada vez maior pela participação nos assuntos públicos, deve ser uma preocupação efectiva. Não parece ser essa a prática política entre nós.

Impõe-se, agora, todo o empenho no sentido de travar e vencer as batalhas previsíveis para os próximos meses, bem como o prosseguimento ulterior do combate para um aprofundamento cada vez maior da vida democrática e para um alargamento dos direitos dos cidadãos, em especial de quem trabalha.


«Avante!» Nº 1272 - 16.Abril.1998