TRIBUNA

Para um Partido de/com futuro

Por Sérgio Ribeiro


De novo o PCP "nas bocas do mundo". Enchendo páginas. Com o leque de analistas - reforçado por ex em recuperação (prot)agonizante - a anunciar a "última crise", a prever inevitáveis rupturas, a aconselhar remédios para o irremediável, a apontar saídas para o beco sem saída em que o Partido estaria.

O "longo sono", a "interminável esclerose" e outros mimos não nos são poupados por quem tanto se incomoda por estarmos acordados, por a esclerose não nos impedir de mexer, de continuarmos vivos. Os que nos passaram certidões de óbito na viragem da década são os mesmos que dizem que temos de mudar se queremos sobreviver e, simultaneamente, que é tarde demais ou que somos incapazes de mudar. Tudo, para eles, vai dar ao mesmo. E aos mesmos. Afinal, eles é que não se vê jeito de mudarem. Peguemos nesta ideia de mudança.


A necessidade de mudar
para continuarmos a ser
o que sempre fomos

Para um marxista, há noções ou conceitos essenciais. Não por virem de Marx, mas porque Marx os leu/apre(e)ndeu na realidade e os traduziu para nossa leitura do quotidiano e, ao mesmo tempo, para os comprovarmos na realidade que vivemos. Realidade que muda todos os dias - todas as horas, todos os momentos! - e em todos os momentos nós, parte da realidade, também mudamos. Por isso, para um marxista a mudança faz parte da ortodoxia, isto é, do seu "esqueleto" de pensamento e de prática social. De praxis.
Dito de outra maneira - até porque estou a meter-me por caminhos em que posso tropeçar nalguma asneirola ou falta de rigor...-, se hoje queremos continuar a ser (e a defender) o que ontem éramos (e defendíamos), temos de mudar. Mas também é certo que, para hoje sermos (defendermos) o que ontem éramos (defendíamos), há ideias, princípios, práticas, que em nós não podem mudar. A grande dificuldade está em mudar o que tem de ser mudado e não mudar o que não pode ser mudado para continuarmos a ser os mesmos e a defender o mesmo.
Os momentos, se todos de mudança, não são todos iguais. A mudança na realidade não é linear. Tem saltos, curvas e contra-curvas. A mudança em nós, que realidade somos e a realidade queremos transformar, também não é linear. E há momentos em que é mais difícil fazer a destrinça entre o que tem de mudar e o que não pode mudar para continuarmos a ser o que queremos ser. Este é um desses momentos? Será. Pelo que os outros de nós dizem, intrigando, e pelo que nós estamos a viver cá por casa. No entanto, quem já muitos momentos viveu (somando décadas) pode dizer que outros houve que teriam sido bem mais difíceis. Não é preciso recuar muito, nem sequer sair desta década...


Só intrigalhada?

É certo que o inimigo (político, de classe) não nos poupa. Mas não podemos fazer da intriga, que é efeito e especulação, a origem de problemas que nossos são. E são estes que me preocupam, como é meu direito e dever, militante de base que sou.
Diria mesmo que o que mais me preocupa, neste momento, é que possa haver camaradas que estimem que o reforço do que defendem para a mudança no Partido passa pela "ajuda" da intriga, e a alimentam por via de "fugas" que só podem ter origem no interior ou de outras formas mais transparentes. E não se confunda esta posição com uma nova postura pessoal que defenda impor inibições a que cada um exponha as suas posições e exprima opiniões onde quer que seja. Só que se deveria, antes de exercer esse direito, prever e prevenir, através de critério baseado nas intenções, os efeitos desse exercício enquanto alimento da intrigalhada, enquanto acirrar de fricções internas que, pelo contrário, é urgente ultrapassar.


Que é isto de ser comunista?

Olhando à volta que vemos? Não é assim por todo o lado, não é a luta pessoal pelo poder, esteja ele a que nível se adivinhe? Dou um exemplo, dos que não vão para as páginas dos jornais de grande tiragem e telejornais. Diz o candidato vencido em eleições para uma JS distrital: "quatro delegados meus votaram no outro candidato, seduzidos pelas suas promessas de lugares, no sábado à noite, na discoteca" (sic). Assim se "formam" políticos...
Somos, nós comunistas, melhores que os outros homens e mulheres que não são comunistas? Quem, depois da opção de ser comunista - não de vestir a camisola mas de escolher uma pele -, sempre viveu rodeado por quem o não era ou não é, sabe bem que não somos nem melhores nem piores. Só temos de ser... diferentes.
Por isso mesmo, militante de base, às práticas e conceitos essenciais fui somando uma espécie de manual de militância, para uso privado, a que chamo Manualitância. Tão privado tem sido que nunca o "passei a limpo" e é significativo que, neste momento partidário, não resista a fazê-lo espreitar para fora da gaveta.

Cito algumas das fórmulas que adoptei como aferidoras:

"Procura, militantemente, ser:
- o mais ortodoxo dos não sectários;
- o mais disciplinado dos não obedientes;
- o mais leal dos não fieis;
- o mais disponível para tarefas dos não incondicionais;
- o mais tolerante dos não permissivos;
- o mais revolucionário dos não reformistas (...)"

Cada palavra tem um sentido (a partir da etimologia) mas há quem lhes dê sentidos e significados diferentes, pelo que sinto necessidade de tornar claro porque as utilizo, sobretudo as mais polémicas. Para mim, ortodoxia quer dizer um conjunto de conceitos que escoram uma concepção de homem e sociedade, e de regras para uma prática coerente, como estatutos e programa de um colectivo como o nosso; revolucionário é, em versão modesta e doméstica, procurar fazer da nossa vida um contributo para transformar a sociedade, para a fazer mais humana, um combate contra a injustiça, a desigualdade, atacando as causas que nos são descobertas pela nossa ortodoxia, e não os efeitos, através da "pena" e correlativa "ajuda" aos que os sofrem, ignorando as causas ou até estimulando-as. (Procurar) ser revolucionário é tomar partido, por uma classe, é adoptar uma ortodoxia, não no sentido pejorativo mas etimológico e político.


Falemos, então, de política...

Embora outra coisa não tivesse feito desde que comecei a escrever - aliás, desde que acordei para uma cidadania algemada e amordaçada...-, parece que, hoje, falar de política tem de ser falar de alternativa, de abertura, de renovação, de impulso.
Começo por confessar que me irrito quando nos atiram à cara não sermos alternativa, não termos capacidade para o ser, que nunca o seremos se não mudarmos por forma a deixar de ser o que somos. É curioso que o argumento - se a argumento chega - é usado por defensores e fautores duma estratégia bipolarizadora de alternância. Isto é, se entrássemos no jogo do "ora agora a social-democracia, ora agora a democracia-cristã, e volta ao mesmo", seriamos alternativa, institucional. Teríamos, nós, a alternativa de escolher para que lado da alternância cair e seria, obviamente, para a social-democracia.
Afirmo - atrevo-me! - que somos alternativa. Acrescento que, colocando-me em perspectiva de longo prazo, não vejo alternativa para a força que somos, para o poder que temos, no terreno e em muitos planos da vida social. Mais, surpreendo-me como, nas condições objectivas - particularmente as da última década do milénio -, guardamos a força que temos, não se vislumbrando alternativas para a luta que prosseguimos.
Satisfeito, contentinho? Não. De modo algum. Apesar de poder surpreender como não ficámos ainda mais feridos e enfraquecidos com o que ocorreu no movimento comunista, e justificou apressadas certidões de óbito, poderíamos - e deveríamos - ter sido capazes de mais e melhor, ao serviço e com as massas. Não satisfeitos, porque em nenhum caso o estaríamos, mas ainda menos desesperados por via do único critério dos votos expressos, para não dizer das sondagens manipuladoras, e do poder institucional.
É preciso mudar. Sempre o é. Renovar, novo impulso, praticar a abertura? Decerto que sim, e podendo contar com a minha militância de base. Mas preocupado. A abertura não pode, para ser "ponte", deixar de se apoiar em "terra firme", numa posição de classe. Uma alternativa de esquerda exige mínimos básicos, como o reforço dos mecanismos de participação na vida política, uma estratégia de desenvolvimento (económico e social), a valorização da intervenção do Estado em favor dos trabalhadores e da população, a subordinação do poder económico ao poder político democrático, a defesa do sector público, o combate às privatizações e à corrupção.
Penso no PS e não há alínea em que a sua posição (progra/pragmática) não seja a contrária ao que a base para uma alternativa de esquerda exige. Não são, o PS e, sobretudo, os seus eleitores, o inimigo, mas a sua prática partidária e governamental serve o inimigo (político, de classe).
De esquerda se fala. Pergunto-me se de esquerda posso falar sem de classes sociais e de opções de classe falar. Pergunto-me!
Temos uma mensagem. E passa dificilmente. Decerto por culpa nossa, mas não podemos partir do pressuposto que ela não passa só por isso. Bom, perfeito trabalho fosse ele sempre e haveria, sempre, mensagem que não passaria ou que seria manipulada e deturpada. A mensagem que serve uma classe nunca terá o inimigo (político, de classe) a facilitar a sua comunicação.

Há muito trabalho a fazer. Como sempre. Temos, agora, um novo impulso? Nascido e forjado na auto-crítica, aproveitando de todos o que cada um tem para dar de experiência e militância, reforçando a ligação com as populações, com os trabalhadores, sem abdicar de ser de esquerda porque de classe? Vamos a isso!


«Avante!» Nº 1272 - 16.Abril.1998