A TALHE DE FOICE

Nós, por cá...


O itinerante primeiro-ministro António Guterres aproveitou esta semana uma ocasional passagem por Lisboa para ir até à 'Expô' encomendar o novo Metro aos portugueses. A aguardá-lo numa estação novinha em folha, uma daquelas surpresas em que as deslocações oficiais com transmissão televisiva são profícuas: o pai, certamente saudoso, que aproveitou a oportunidade de encontrar o filho a cores e ao vivo e lhe afinfou carinhosa beijoca na bochecha, sob o olhar enternecido da comitiva e das câmaras, que não deixaram de registar o rubor que se apossou por breves instantes da governativa face.

Depois foi ver o primeiro-ministro, de capacete azul, armado em páginas amarelas do metropolitano, explicando como vai ser fácil chegar à 'Expô' por via subterrânea, seja qual for o ponto de partida, poupando tempo e dinheiro e sobretudo evitando as previsíveis bichas que já se antevêem para a última exposição do século. Já de gabardine e cabeça ao léu, os portugueses ainda puderam ver por breves instantes o seu primeiro-ministro a ginasticar as pernas para saltar as poças de água que alagam os acessos à 'Expô', onde a persistir o tempo molhado e os atrasos nos trabalhos mais vai valer ir de galochas todo o terreno.

Ainda esta semana, já com as malas aviadas a caminho da China, Guterres teve ainda tempo de dar uma saltada ao Parlamento para um encontro relâmpago com os deputados da Nação, e ala que se faz tarde, lá seguiu para nova corrida, nova viagem. A estas horas deve estar a experimentar os pauzinhos na caça ao arroz chau-chau, sem tempo a perder com as comezinhas preocupações dos portugueses.

Nada de grave, de resto, que este é um ano em que todo o povo tem obrigação de ser feliz. Porque a Ponte Vasco da Gama já funciona (mal, mas funciona); porque os trabalhos no evento do século estão para lavar e durar; porque a brucelose é um património nacional que o país não vai deixar desaparecer; porque nas forças policiais a tradição ainda é o que era, bate-se primeiro e pergunta-se depois; porque as tarifas telefónicas baixaram apesar de estarem cada vez mais caras; porque os presos fogem da prisão com a benção dos bispos; porque já ninguém acredita em greves, mas lá que existem, existem; porque os referendos estão na calha e não há nada melhor do que uma campanha para animar as hostes; porque os barões do partido laranja voltam a afiar as facas em mais um corridinho algarvio, que tem desde já o mérito de ter posto Marcelo em meditativo retiro; porque os pcptólogos voltaram à ribalta para anunciar a morte definitiva do há muito morto e enterrado comunismo; porque, enfim, até o Movimento Europeu presidido por Mário Soares caiu sob a alçada de Bruxelas por causa de uns trinta mil contitos mal parados, e nada é mais estimulante do que o perfume do escândalo.

Guterres não tem pois motivos de preocupação e pode continuar a cruzar os ares nas suas deambulações pelo vasto mundo, ou não fosse Portugal um país de navegadores. Para ajudar à festa, nem faltou sequer por aí o boato, de obscura origem como mandam as regras, a dar como provável a sua indigitação para substituir Jacques Santer à frente da Comissão Europeia, o que mesmo não passando de conversa fiada calha sempre bem num currículo político.

O país, esse, cá vai andando. Devagarinho, que a perna é curta. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1272 - 16.Abril.1998