Os intocáveis e os outros


Carlos Zurita, duque de Sória e cunhado do rei Juan Carlos, desloca-se com frequência a Portugal. Numa dessas deslocações - em Fevereiro passado - foi a uma livraria do Bairro Alto. Deixara, entretanto, o carro (de matrícula portuguesa) mal estacionado e quando, feitas as compras regresssou ao veículo esperavam-no dois agentes da PSP que lhe pediram a identificação e os documentos do carro. O duque não levava documentos de identificação e quando abria o porta-luvas para tirar os documentos do carro, os agentes da PSP, suspeitando que ele ia tirar uma arma, agarraram-no, agrediram-no, algemaram-no e levaram-no para a esquadra do Bairro Alto. Pouco depois, graças à intervenção do embaixador espanhol junto da Presidência da República, o duque foi posto em liberdade após o que, no Hospital da CUF, foi assistido a um corte na orelha.

Esta é em traços largos, a versão do El País. Versão correcta? Incorrecta? Estou em crer que não deve andar longe da verdade. Com efeito, para as autoridades espanholas o incidente não vai afectar as «relações entre Portugal e a Espanha: são coisas lamentáveis que acontecem». Por seu lado, o ministro Jorge Coelho, naquele seu estilo de «só me saem duques», recusou-se, primeiro a comentar «se houve agressão, se não houve agressão, se houve tratamento, se não houve tratamento; depois afirmou tratar-se de «um ligeirísssimo acidente... e que não houve qualquer agressão»; e no meio de tudo isto, produziu ainda a seguinte curiosíssima declaração: «as relações entre Portugal e Espanha não podem ser afectadas por um pequeno problema numa rua de Lisboa, onde um cidadão, que a polícia não sabe quem é, tem um carro mal estacionado e recusa identificar-se». E, confirmando que tudo não foi nada, acrescentou: «eu próprio almocei no dia seguinte com o duque de Sória».

Ficamos, assim, a saber que a agressão ao duque só se verificou porque os polícias não sabiam de quem se tratava. Soubessem eles que o duqe era duque e outro tratamento lhe cantaria. Para o ministro Jorge Coelho há pessoas intocáveis e há pessoas em quem a polícia pode bater à vontade. O duque está no primeiro grupo e só por lapso foi agredido. No segundo grupo estão todos os que «a polícia não sabe quem são»... nomeadamente os trabalhadores do Hotel Ritz, há dias vítimas de uma carga policial. Não por terem os carros mal estacionados. Não por falta de documentos de identificação...
Apenas e só por lutarem pelos seus direitos, por lutarem por melhores salários.
A propósito: alguém conhece algum caso de carga policial contra patrões? Não. Porque o ministro Jorge Coelho «sabe quem são» os patrões. — José Casanova


«Avante!» Nº 1272 - 16.Abril.1998