Segredos da riqueza
e trabalhos da pobreza


Esta semana um canal de TV apresentou uma reportagem sobre um tema de grande actualidade: a pobreza nos Estados Unidos. Reportagem que surge, aliás, ao arrepio da campanha sobre a superioridade económica» do «modelo americano» ultraliberal para «gerar riqueza» e «reduzir o desemprego» - em contraposição ao «modelo europeu» de suposto «Estado social». Campanha que não visa mais do que dar cobertura às ofensivas contra as conquistas sociais alcançadas pelos trabalhadores na Europa.
Segundo a referida reportagem, há actualmente nos Estados Unidos cerca de 30 milhões de pessoas (3 vezes a população de Portugal) a sobreviverem com recurso á «sopa dos pobres». Esse número tem vindo a crescer rapidamente: aumentou 30 por cento nos últimos 18 meses. E o mais espantoso é que esses milhões de pobres do país mais rico do mundo - assinalava a reportagem - não são somente os desempregados e mendigos: são, na sua maioria, trabalhadores em exercício, cujos salários não lhes permitem sequer assegurar a sobrevivência alimentar…
Assim funciona nos Estados Unidos o «mercado livre» do trabalho, em que a proclamada liberdade de mercado não é mais do que um mecanismo constrangedor, restritivo, punitivo, daqueles que trabalham.

Tal como dizia Marx, essa pauperização de largas massas de trabalhadores tem contrapartida na esmagadora acumulação de riqueza em mãos de um restrito grupo de detentores de capital. Veja-se apenas isto: as cinco maiores empresas dos Estados Unidos facturam por ano tanto como o Produto Interno Bruto de um país como o Brasil. E um estudo da ONU apresentado na Conferência Rio-92 referia existirem no mundo 1,5 milhões de seres humanos abaixo do limite de pobreza, havendo num outro extremo 157 bilionários (em dólares).
O modelo neoliberal, feroz e zelosamente defendido e aplicado por conservadores, liberais, trabalhistas, social-democratas e socialistas de direita está acentuando tragicamente essa polarização à escala mundial, com dramáticas consequências. Segundo a FAO, apesar de existirem hoje possibilidades de alimentar 10 000 milhões de pessoas (o dobro da população mundial) há mais de 700 milhões de seres humanos sofrendo fome: estão «fora do mercado», não têm «poder de compra» para adquirir as alimentos de que necessitam. E enquanto 20 por cento da população mundial se apropria (com os Estados Unidos à cabeça) de 85 por cento da riqueza no mundo - no outro polo, no doloroso extremo, aos 20 por cento mais pobres só vai cabendo 1,4 por cento do rendimento mundial.
Tal é o resultado das leis secretas do controle dos mercados pelo grande capital financeiro, apoiado nas estruturas e instrumentos do Estado, e reduzindo os trabalhadores, apertados pela fome, a vender por preço aviltado a sua força de trabalho, precisamente por nada mais terem além dos seus braços e da sua descendência, a sua prole - e por isso mesmo Marx lhes chamou os proletários.

Adam Smith, patriarca do liberalismo económico, imaginou no Século XVIII que a oferta e a procura assegurariam a harmonia reguladora de um mercado ideal. Mas se o mercado do trabalho foi sempre selvático, o que dele hoje persiste é a filosofia indecentemente desumana de ter sempre à mão quem trabalha, pela insegurança no emprego e o desespero do desemprego.
O capitalismo, sobretudo na sua conformação actual, não é só uma má noite para os que devem a sua vida ao trabalho: tornou-se um pesadelo tão desumano que se torna premente dele acordar, para uma manhã clara e justa. — Aurélio Santos


«Avante!» Nº 1272 - 16.Abril.1998