Crónicas de Almedina
O papel da ciência
«U
m mundo infestado de demónios», de
Carl Sagan. O prazer de ler um cientista-comunicador, empenhado na luta contra a
estupidificação da sociedade americana (e não só). O elogio do cepticismo, da
curiosidade e do método científico, contra a credulidade que deixa os humanos à mercê
de todo o tipo de charlatões.
Ponto de partida do astrónomo: os milhares de relatos de cidadãos americanos (geralmente
feitos no divã do terapeuta) sobre «raptos» e abusos sexuais por alienígenas. A carga
emotiva rapidamente propagada por tablóides sensacionalistas e cadeias de televisão
ávidas de audiência. O papel dos cientistas e a exigência de provas, a derrapagem de
membros da própria comunidade científica americana para posições insustentáveis.
Um livro cheio de incursões aos obscurantismos do passado europeu, à inquisição, às
aparições, à perseguição das diferenças como «cultos satânicos», às motivações
mais prosaicas e menos conhecidas de uns e outros.
Os «ovnis» e todo o cortejo de alucinações frequentemente associadas, vistos como uma
nova onda do mesmo fenómeno, das mesma necessidade de delírio, entroncando em poderosos
interesses que dela se servem, da mesma luta entre luz e trevas.
Duas pistas interessantíssimas para a reflexão:
1
. O gravíssimo contraste do mundo de
hoje, formado por seres humanos muito poderosos pelos meios que utilizam, mas muitíssimo
frágeis diante da superstição, muitíssimo ignorantes dos avanços da sua própria
Ciência. Carl Sagan chega mesmo a avançar a opinião de que a sociedade americana
estará, deste ponto de vista, a regredir; que a pseudociência, atraentemente misteriosa,
de assimilação fácil e superficial, estará a ocupar cada vez mais espaço na vida dos
americanos de hoje, roubando esse espaço ao conhecimento científico. A curiosidade das
crianças e dos jovens desviada da observação, do método experimental e da crítica,
para o reino da crendice e da alienação.
Com humor, Sagan põe a nu o contraste entre a atitude racional e céptica com que um
cidadão compra um carro usado e a credulidade com que «engole» umas patranhas
televisivas sobre alienígenas raptores ou curas milagrosas.
2
. A equiparação da ciência à
democracia. No sentido de que a descoberta mais brilhante tem que ser constantemente posta
em causa, controvertida, até se chegar à conclusão de que há outra
«hipótese» que se ajusta melhor à explicação da realidade. Na rejeição do
dagmatisrno, mas também no constante estímulo à renovação pela crítica, pela
formulação de novas hipóteses, mesmo que aparentemente absurdas.
Em suma, não só ciência e democracia têm que aceitar a diferença de pontos de vista,
como necessitam em absoluto dessa diferença, que é condição do seu perfeiçoamento.
Um belo livro, para o nosso tempo de luta por um mundo melhor, mais vivo e menos
acrítico. Um importante estímulo ao afastamento dos demónios que cercam, encantam e
afligem os humanos dos nossos dias.
Um contributo para um novo impulso de civilização. Jorge Gouveia
Monteiro
«Avante!» Nº 1272 - 16.Abril.1998