TVisto

O major e nós

Por Correia da Fonseca


Gostei do episódio inicial de «Major Alvega». Gostei bem menos do episódio seguinte. Bem se sabe que os primeiros episódios de uma série são, em regra, melhores que os restantes, mas era escusado que a produtora seguisse tão rigorosamente essa tradição, que nem é exageradamente simpática. Como se compreende, depois da clara descida de méritos entre o primeiro e o segundo episódio fica-se a aguardar com alguma ansiedade o episódio seguinte: sendo o herói das sucessivas estórias um ás da aviação, não vá a série entrar em voo picado.
Se assim fosse, seria verdadeiramente desapontador: em contraste com a generalidade das estreias que ocorreram na TV portuguesa e que não passam da repetição de rotinas que já cansam, «Major Alvega» surgiu diferente e melhor, a ponto de instilar uma pontinha de orgulho pela circunstância de se tratar de um produto português. Configurou-se, de facto, como uma excepção. De onde, também, o carácter um poucochinho excepcional desta nota: está longe de ser frequente que nas colunas do «Avante!» se preste especial a uma série de aventuras pueris.


O lado certo

Em verdade, aquelas aventuras não são tão pueris assim: mesmo à medida e no tom de uma B.D., a ficção que evoca a luta contra o nazismo tem sempre um subjacente sedimento de seriedade profunda. É claro que a banda desenhada simplifica e injecta na narração um elemento de caricatura que nos melhores casos, sendo uma forma de humor, enriquece o trabalho. Também é claro que os oficiais nazis não eram imbecis histéricos como o «Koronel Von Block» (figura admiravelmente criada pelo actor António Cordeiro), e ainda mal. Mas não é mau, antes pelo contrário, que mesmo em tom de farsa e bestialidade hitleriana seja lembrada, e essa memória é sem dúvida um activo relevante no património do «Major Alvega».
Podemos, e decerto devemos, cumprimentar a capacidade de uma produção que fez o que nunca por cá havíamos visto: combinar diferentes técnicas de forma a resultarem num televisivo «erzatz» (perdoe-se-me o germanismo que na circunstância vem mesmo a calhar) da banda desenhada que há uns trinta e tal anos trouxe a gesta da Batalha de Inglaterra para os olhos juvenis que liam o «Falcão». Embora seja preciso reflectir em que a capacidade técnica, só por si, não garante méritos que ultrapassem o estrito minimundo em que se inscreve, ao contrário do que muitas vezes apressadamente se supõe.
Eu explico melhor. Lembro-me do prodígio técnico que é a bomba nuclear e não fico embevecido. Falam-me das empenhadas pesquisas científicas que conduzem à fabricação de armas químicas e não me sinto deslumbrado. Sei da complexa teia de contactos, dependências e cumplicidades que consubstanciam as transnacionais da mentira, mas não é maravilha que me empolgue. Regresando ao contexto da Segunda Guerra Mundial, direi que a Wehrmacht era sem dúvida a máquina de guerra mais avançada no plano técnico, mas que o mérito estava nos resistentes que combatiam com armas escassas e porventura débeis, quando não de mãos nuas.
É o hálito já antigo dessa epopeia que ainda sinto perpassar em «Major Alvega», apesar da simplificação e do seca tom de comédia. Por isso digo que, neste caso, o bom conselho técnico se situou do lado certo. E acrescento que isso não pode ser considerado secundário.


Nota final

Não quero fechar este apontamento sem registar o factor que, com razão ou sem ela, mais directamente me despertou o eco de uma emoção: a voz de Fernando Pessa no princípio e no final dos episódios (mais no episódio de estreia, também quanto a este pormenor). Como terá acontecido a muitos outros que por esse tempo eram garotos, mas ainda assim estavam despertos para o que ia pelo mundo, a voz do Pessa a falar de Londres era o claro sinal de que a esperança ia vencer. Depois disso, aquela voz fez muitas outras coisas, decerto nem sempre as melhores, seguramente que nunca outras tão emocionantes e, sempre o quis crer, tão emocionadas. Assim me ficou na memória e no afecto.
Agora, nesta série de aventuras de B.D. a que chamei pueris, a voz do Fernando Pessa foi o toque de uma autenticidade recuperada, e não certamente por acaso. Querem saber? Tomou-me a vontade um pouco tonta de agradecer-lhe por, apesar de tudo, ter sido capaz de chegar até ali.


«Avante!» Nº 1272 - 16.Abril.1998