Transporte ferroviário no Reino Unido
Custos e ensinamentos
da política de privatização


Até à década de 40, os caminhos-de-ferro britânicos estavam na posse de privados. A partir de 1948, com a constituição da Comissão Britânica de Transportes, passaram a ser propriedade pública, junto com outros serviços de transporte. A Comissão Britânica de Transportes deixou de existir nos começos da década de 60, passando os caminhos-de-ferro a estar na dependência da British Railways Board (Administração dos Caminhos-de-Ferro Britânicos) que, sendo uma organização autónoma, era propriedade estatal.
O governo conservador, que chegou ao poder em 1979, foi transferindo um importante número de serviços para o sector privado, entre os quais os caminhos-de-ferro. Após a aprovação da Lei dos Transportes Ferroviários em 1993, o Governo levou a cabo uma política de fragmentação, para posteriormente privatizar o sector.

Os custos e ensinamentos dessa política foram apontados por sindicalistas portugueses que recentemente se deslocaram a Londres no documento que divulgaram após o seu regresso (ver «Avante!» de 26 de Fevereiro) e de que aqui publicamos excertos.

O objectivo central e primordial da Lei de 1993 foi a fragmentação da Administração dos Caminhos-de-Ferro Britânicos e a transferência de todas as suas actividades para o sector privado. Ideologicamente, o governo britânico sempre entendeu haver uma maior eficácia do sector privado em relação ao público e que a motivação produzida pelos lucros e pela competição representaria um incentivo rumo à eficácia e qualidade.

Não há dúvidas de que havia outras razões para privatizar. Na Introdução da legislação era afirmado o seguinte: «É de esperar que, com o tempo, os custos de exploração dos transportes ferroviários dentro do sector privado serão menores para o Ministério das Finanças do que seriam no caso contrário». Para um governo radicalmente empenhado em diminuir as despesas públicas, a passagem da indústria ferroviária para o sector privado trazia a vantagem de reduzir o investimento público.

Princípios
para a divisão

Basicamente as mudanças introduzidas na estrutura organizativa resumiram-se à criação de uma organização totalmente independente - a Railtrack - encarregada da infraestrutura ferroviária, incluindo as vias e o sistema de sinalização; de três empresas de material circulante, pelas quais foi distribuído o material circulante da British Railways; de vinte e cinco empresas para a exploração dos comboios de passageiros; e de três empresas para o transporte ferroviário de mercadorias.
Criaram-se ainda treze organizações de manutenção das infraestruturas e renovação das linhas, na base dos sectores técnicos da British Railways que estavam encarregados de tais funções. As novas organizações trabalham com base em contratos celebrados com a Railtrack.
Contudo, a fragmentação não terminou aqui. Foram vendidas as principais oficinas de reparação de material circulante da BR. Treze importantes estações foram colocadas sob administração autónoma, ao mesmo tempo que foram oferecidas ao sector privado importantes actividades comerciais da BR, incluindo o departamento de investigação, sistemas e serviços comerciais e o fornecimento de material e equipamento.
Foram vendidos ao sector privado dezoito sub-sectores da BR e, se as propostas do governo fossem aplicadas na totalidade, a British Railways fragmentar-se-ia em mais de cem organizações distintas.
As mudanças operadas ultrapassam o que é necessário para cumprir as directivas comunitárias, cujo requisito básico é uma contabilidade própria para a infraestrutura e as operações ferroviárias. As directivas não requerem a criação de empresas totalmente independentes nem a fragmentação da indústria ferroviária num vasto número de organizações separadas e sua transferência para o sector privado. Contudo, várias vezes o governo britânico fez referências às directivas para justificar as mudanças efectuadas.

Os custos
dos lucros privados

Com a fragmentação da estrutura ferroviária num vasto número de empresas privadas independentes, encarregadas dos distintos aspectos das operações ferroviárias, as relações de trabalho entre as empresas passaram a ser determinadas por contrato. Os numerosos e complexos documentos legais criaram obstáculos desnecessários e considerável burocracia na gestão diária do sistema ferroviário. Ainda que os contratos legais sejam claros e precisos e com uma só interpretação, a existência de organizações separadas cria barreiras - particularmente no fluxo de informação - que afectam os utilizadores dos caminhos-de-ferro.

Para que este sistema ferroviário fragmentado pudesse funcionar, o Governo viu-se obrigado a criar duas novas agências estatais: o Gabinete do Regulador Ferroviário e o Gabinete do Director de Taxas Ferroviárias para Passageiros.

O último presidente de British Rail, sir Bob Reid, falando sobre a fragmentação e privatização dos caminhos-de-ferro, admitiu que preferia investir o seu próprio dinheiro num matadouro ou numa plataforma petrolífera, em vez de numa qualquer parte dos caminhos-de-ferro. A privatização, disse, «seria excessivamente cara e intensamente burocrática». Um verdadeiro «pesadelo». Depois de haver admitido que a qualidade do serviço tinha começado a diminuir, acusou o governo de se imiscuir em assuntos que não entendia e exprimiu a sua preocupação de que as novas empresas comerciais do mercado ferroviário se vissem tentadas a procurar maiores lucros, e não propriamente a investir de novo na rede.

Em termos financeiros, o custo da privatização ferroviária é superior a mil milhões de libras. Ainda de acordo com cálculos governamentais, o custo da privatização ferroviária - deixando de lado os custos da reestruturação e da redução de postos de trabalho - foi calculado em mais de 300 milhões de libras. Para além disso, a British Rail calculou que deverá investir outros 100 milhões durante os dois próximos anos, como resultado directo da privatização. Ao mesmo tempo, o subsídio ferroviário metropolitano, pago pelo governo às autoridades regionais de transporte de passageiros para que possam suportar os custos mais altos impostos pela Railtrack pelo uso e manutenção das linhas e do sistema de sinalização, custou em 1994, 200 milhões e outros 200 milhões em 1995. A isto devem juntar-se outras medidas integrantes da privatização ferroviária, incluindo a amortização de dívidas e mudanças nas disposições fiscais, que totalizam 4 mil milhões, para fazer com que a indústria fosse atractiva para os privados.

O Comité dos Transportes da Câmara dos Comuns - na qual os conservadores detinham a maioria - declarou que a privatização dos caminhos-de-ferro teria como resultado um acréscimo na despesa pública da ordem dos 500 a 700 milhões de libras ao ano, para manter o nível de serviços.

Mais despesas
e pior serviço

Nas sete principais ligações fora de Londres, o financiamento das operações de serviços ferroviários corre a cargo de «autoridades de transporte de passageiros». Como resultado da criação da Railtrack e da decisão de que esta deveria cobrar tarifas comerciais pelo uso da via e do sistema de sinalização, duplicaram, em média, os pagamentos a que as autoridades de transporte de passageiros estão obrigadas. Apesar da declaração do governo de que a privatização iria reduzir gastos, o executivo viu-se obrigado, de facto, a duplicar os subsídios às autoridades de transporte de passageiros, para que possam pagar os novos encargos impostos pela Railtrack e pelas empresas arrendatárias do material circulante.
Contudo, nos últimos anos, o governo reduziu consideravelmente as transferências de verbas para os municípios, existindo boas razões para crer que também se reduzirá o montante consignado às autoridades locais responsáveis pela prestação de serviços ferroviários. Ao mesmo tempo, as autoridades locais viram-se submetidas a fortes pressões financeiras em todos os sectores das suas actividades, tais como educação, habitação e prestação de serviços sociais. É possível que as autoridades locais decidam, elas mesmas, avaliar meticulosamente o que estão a pagar por tais serviços, na hora de decidir as verbas disponíveis para cada uma das actividades. Apesar da negação do governo, é provável que tais pressões resultem na supressão de serviços e funcionamento de linhas.
O Director de Taxas tem sob sua responsabilidade o estabelecimento de níveis mínimos de serviço que as empresas dos comboios de passageiros devem satisfazer. Na base de decisões por ele adoptadas até à data, respeitantes à primeira série de empresas postas a licitação, os requisitos impostos parecem equivaler a 80-90 por cento do actual nível mínimo de serviço.
Suspeita-se que, na realidade, o Director deu luz verde às novas empresas exploradoras privadas para que ponham em marcha um serviço inferior ao actual, porque o governo não proporcionou verbas suficientes para permitir o financiamento dos níveis actuais de serviço. A este respeito são elucidativos alguns comentários, nomeadamente de um responsável da Railtrack, que referiu que não havia nenhuma razão para manter em funcionamento as linhas rurais pertencentes à British Rail.

A «eficiência» dos privados

Como resultado da divisão entre infraestrutura e operação de serviços e da fragmentação de todos os sectores da actividade ferroviária, as relações de trabalho entre numerosas empresas seguem canais estritamente comerciais, em que cada uma delas trata de reduzir ao mínimo os seus custos e aumentar ao máximo os seus lucros, de forma a que possam proporcionar benefícios financeiros para os accionistas e proprietários. Os lucros são da indústria ferroviária mas não voltarão a ser investidos para benefício da própria indústria.
No que respeita ao facto de que as novas empresas procuram reduzir os seus custos, ninguém pode objectar a que uma empresa trate de explorar um serviço de alta qualidade da forma mais eficiente possível, que salvaguarde o funcionamento seguro de tal serviço. Contudo, o que fica demonstrado - e com demasiada frequência - é que as empresas privadas procuram melhorar o seu rendimento financeiro, não necessariamente mediante a atracção de um maior volume de negócio e, por conseguinte, de receitas, mas sobretudo através da poupança de custos, reduzindo postos de trabalho e atacando as condições de trabalho, incluindo os salários. A privatização da British Rail conduziu já à perda de 24 mil postos de trabalho.

O governo defende que a gestão privada é superior à gestão pública, sem que existam dados que possam comprovar tal afirmação. Com demasiada frequência os únicos conhecimentos técnicos que o sector privado parece possuir são a sua inclinação para fazer pagar através dos trabalhadores, os benefícios financeiros obtidos pelos proprietários e accionistas.

Um sistema ferroviário privatizado e fragmentado é menos seguro. Se bem que no Reino Unido seja exigido que cada organização tenha planos de segurança e um processo de certificação desses planos, a realidade é que a segurança não consiste na produção de documentos, mas numa cultura que valorize essa componente e lhe dê assim absoluta prioridade, não permitindo atalhos de qualquer espécie. Se se destrói tal cultura, mediante o estabelecimento de organizações ferroviárias em competição para quem os resultados financeiros são o único objectivo com importância, a segurança ficará com certeza comprometida. São muitos aqueles que afirmam que essa é a razão pela qual são tantos os transportadores instáveis, e o motivo por que têm aumentado os acidentes também com autocarros de empresas privadas.
O incremento da segurança exige investimentos; entretanto, assiste-se ao desperdício de vastas somas de dinheiro público na fragmentação e privatização dos caminhos-de-ferro britânicos, ao mesmo tempo que se nega o dinheiro necessário para implementar medidas de segurança recomendadas. Em primeiro lugar está a privatização e só depois a vida dos passageiros.


«Avante!» Nº 1273 - 23.Abril.98